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ANABELA BORGES |
Desta vez, decidi dar-vos a conhecer, em “tranches”, o meu conto A Tundra (cemitério de memórias), premiado e publicado em 2011 pela editora Alfarroba. É um conto pelo qual tenho um apreço especial, já que, além de se tratar da minha primeira publicação, constitui um verdadeiro epítome do que são as minhas raízes, as pessoas e o lugar onde nasci; o meu norte e o Norte; raízes do profundo Portugal. Aqui vai:
E não se saudaram na paz de Cristo .
Lisinha baixava os olhos . Afligia-se por dentro numa aparente quietude , cruzava os braços curtos , os ombros ligeiramente encolhidos, esperava que o padre encerrasse a celebração , fazia o sinal da cruz e saía, muito lesta , a cabeça levantada, sem um pinto de cabelo branco à vista , no volume preparado com mise.
“Até mais ver , senhores ”, era o adeus apressado , atirado para os que se demoravam em conversas , no frescor indolente de mais um domingo acabado de nascer .
As missas assim não eram a mesma coisa . Não eram completas. Não se podiam as pessoas benzer com água benta , nem beijar , nem mesmo podiam comungar . Não , não eram verdadeiras missas .
Lisinha caminhava pensativa , as ancas a rolarem sobre as pernas curtas, “Bom dia , como está?”. Caminhava. Movia-se pela berma da estrada , passando, primeiro , pelas casas afidalgadas, devidamente gradeadas, exalando o cheiro adocicado do jasmim , que subia lentamente como se por ali rondasse mulher distinta e misteriosa, e do alecrim , que espalhava em redor o seu poder contra o mau-olhado , competindo com as malcheirosas arrudas , a esticar as suas pontas finas como dedos em direcção às portas das casas baixinhas, em pedra de cantaria , degradadas, com as chaminés a expelirem os cheiros untuosos do assado de domingo , ou dos rojões , ou do cozido , pelos caminhos de terra que Lisinha atravessava a seguir , “Até mais ver , se deus quiser”, metendo-se, por fim , pelo comprido canelho que a conduzia a sua casa, ligeiramente inclinado, escondido entre as ladeiras das talhadas irregulares dos quintais , exigindo cautela nos passos , por causa das pedras soltas e das finas raízes contorcidas que se espalhavam como gadanhas traiçoeiras, a sussurrar quem se mete por atalhos .
Eram as missas que lhe andavam a fazer confusão . Sim , ela ouvia o que diariamente, na televisão , se dizia sobre esse diabo à solta , que tinha vindo do estrangeiro . Ouvia o que dizia a ministra da saúde , a senhora que tinha um ar de quem sabe sempre o que diz, com um sorriso sereno nos lábios ; ouvia os doutores , de semblante carregado , que nem sempre pareciam tão seguros nos dizeres como a ministra ; ouvia, enfim , os noticiários .
Lisinha sabia o suficiente sobre o bicho . Sabia que ele veio dos porcos e que dos porcos passou para as pessoas . Escondia-se atrás delas e punha-se-lhes às cavalitas, assim de um jeito que elas não o viam nem davam por ele , mas estava lá , imprevisível como a vida . Era negro como a noite e um tanto arroxeado , tinha cara de macaco e era um pouco felpudo . Mostraram uma imagem na televisão . E ela viu. Tinha uns braços fininhos, muito compridos e com muitos dedos para se agarrar bem . Assim andava, passando de pessoa para pessoa , multiplicando a sua figura , de tal forma que , por todo o mundo , era possível encontrar gente com ele às cavalitas. Depois , pesava-lhes como chumbo , dobrava-as, empalidecia-as, tirava-lhes as forças e atirava-as para os corredores dos hospitais , muito corcovadas, de olhos vermelhos como o diabo em pessoa , e daí para a cama . Alguns , mais tolhidos, mais fracos de físico , ou doentes dos órgãos , não resistiam ao ataque do malvado e vinham a falecer , pela força com que lhes comprimia os pulmões , ferindo-as com chios e arranhões de gatos , com amarfanhos de unhas aguçadas e invisíveis .
De demos , satanás, belzebus , tinhosos e mafarricos sabia Lisinha desde pequena . Figurou-se-lhe, desde cedo , que as fisionomias com que se apresentavam são as muitas de um só anjo , um anjo negro e poderoso , o mais temido de todos os anjos . E não tinha medo . Cruzara-se muitas vezes com ele . Ele aparecia na forma de diferentes caretas , e Lisinha foi-o percebendo ao longo da vida , juntando visões atrás de visões , episódios atrás de episódios . No princípio , não sabia que ele podia andar por aí , no meio do povo , sem mais nem menos . Depois percebeu que sim . Andava. O diabo anda sempre . Aquele que raptou a menina e a manteve presa durante tantos anos , numa cave , e fez-lhe tanto mal , era um deles. Um diabo feito gente .
Uma vez , ela foi levantada por um , quando levava à cabeça um feixede lenha recolhido entre o mato que o seu pai andava a cortar . Era um molho de lenha fina , escura e contorcida e era tão alto que parecia não ter fim , tão alto e desconjuntado, que nem ela sabia explicar como conseguia equilibrá-lo na cabeça . Lisinha não teria mais que onze anos . Estava um tempo sereninho, uma brisa morna sacudindo as folhas das carvalhas, na berma do caminho – o caminho que agora é estrada de asfalto , que conduz à cidade , que atravessa o percurso das casas afidalgadas com cheiro de mulher misteriosa (e as carvalhas ainda estão lá). Ele veio sem avisar , levantou Lisinha com a sua mão poderosa e transportou-a durante alguns minutos no ar , sempre a rodar , exibindo sobre ela o carão avermelhado, com um sorriso de orelha a orelha , os dentes muito largos e brancos a saírem-lhe dos lábios finos , o fogo a arder-lhe no olhar . Ninguém pôde acudir a Lisinha. Por mais que ela gemesse, com os braços curtos erguidos no ar , a segurar os paus engenhosamente postos uns sobre os outros , ninguém ouviu nem viu nada . Não havia, portanto , testemunhas . Tal facto, porém , não tornava o acontecimento menos digno de credibilidade e consideração , como a seguir veremos. Aqueles eram tempos em que se respeitavam os impulsos das forças maiores , viessem elas de onde viessem. Depois , a roda parou, a mão gigante pousou Lisinha muito direitinha com o molho à cabeça e ela seguiu o seu caminho , carregando, agora também , um desconforto frio e pesado no fundo da barriga , as ancas redondas a acelerarem-lhe o passo , a perna curta . Sem olhar para trás .
Vieram dizer-lhe que fora um remoinho , um torvelinho , coisas da natureza , que vão e vêm sem se dar conta . Pois , e então . Quem disser que não há mão do diabo nos rebuliço
, pés-de-vento, ou buzaranhas, só pode ser doido . E tinha razão .
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(para continuar…)