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O SISTEMA DE ENSINO: UMA REFLEXÃO

 O sistema de ensino é o fundamento da  vida de um país.  Pouco importa que haja muito turismo, enorme beleza paisagística, pessoas fora do comum,  monumentos,  praias…se falhar esse pilar da sociedade, tudo o resto carecerá de sentido.

O “sistema de ensino” é uma expressão utilizada para designar um vasto e importante conjunto de sectores, de meios, de pessoas,  de literatura, etc.; e é de tal modo abrangente que diz respeito a  todas as pessoas,  envolve praticamente todas as idades é,  em suma, um perfeito micro-cosmos da macro – sociedade em que qualquer um habita. Na prática,  o funcionamento do sistema de ensino reproduz o funcionamento de todas as restantes instituições sociais e é reproduzido por elas; pelo que, sociedade e ensino constituem uma relação dialéctica e a sua plenitude depende de um são equilíbrio entre eles.
Quando utilizo a palavra “ensino” pretendo referir-me a um conjunto vasto de situações,  de actos,  de personagens. Especificamente, o ensino apoia – se em necessidades civilizacionais criadas pelos homens, no tempo, necessidades consideradas secundárias, pois decorrem da cultura, e a sua falta não põe em risco a sobrevivência.  Mas – sabemo-lo – o homem é muito mais do que um primata superior, refém de necessidades básicas, evoluiu no tempo e no espaço, criou culturas e transformou – se com elas. Hoje,  o mundo que para si criou exige – lhe competências que decerto não estavam inscritas no ADN original da espécie; e é por essa razão que a necessidade de ir à escola, adquirir o que falta ao humano incipiente de 5/6 anos de idade, se transformou num percurso necessário e numa obrigação civilizacional.
“Ir à escola” – eis o que devem fazer todas as crianças,  adolescentes, jovens e adultos se desejam ser pessoas do seu tempo, perceber o mundo em que vivem e dar o seu contributo. 
Nesta frase estão contidos, de forma sintética, os objectivos de todo e qualquer sistema de ensino, e são eles: ser um homem /mulher do seu tempo, perceber o mundo em que vive e tornar -se parte activa do seu meio. Para consegui -lo, o sistema de ensino precisa de estar adequado ao tempo, pois este é o denominador comum da síntese. Uma escola,  um corpo docente,  um conjunto de currículos desfasados da realidade actual, em ordem à projecção no futuro,  não faz qualquer sentido.
Não me parece que, no tempo de hoje,  uma criança de 5/6 anos esteja muito predisposta para lidar com os livros e logo com a leitura e a escrita. Vejo a infância absolutamente refém da tecnologia audiovisual, vejo – os a aprender as palavras,  os conceitos, os hábitos, as relações sociais através de instrumentos como a televisão,  o computador, o tablet , o telemóvel,  com os quais lidam perfeitamente, desenvolvendo perícias que, de modo nenhum serão compatíveis com o acto de pegar num lápis e aprender a desenhar as palavras ou de aprenderem o gozo e o prodígio de as conseguirem reconhecer nas páginas dos livros, lendo.
A questão que levanto é a seguinte: deverá a escola dar continuidade aos instrumentos que a criança já manipula habilmente quando chega ao primeiro ano do ensino básico, introduzindo as demais práticas escolares a partir daí ou deverá romper com eles, apresentando – lhe os livros,  os cadernos,  os lápis como instrumentos preferenciais para a sua aprendizagem? 
Levar a criança a treinar as mãos na tarefa de segurar um lápis de modo correcto e aprender,  treinando todos os dias,  a desenhar as letras e a formar com elas palavras e frases é,  sem dúvida,  uma actividade exigente desencadeadora de estimulação de áreas cerebrais importantes, úteis na definição do que significa ser humano. Atrofiar a perícia desenvolvida ao longo de milhares de anos que teve início na libertação da mão da locomoção e progressiva e cada vez mais especializada utilização dos dedos em tarefas pormenorizadas não será um atentado àquilo que fez do homem aquilo que é hoje, estabelecendo a comunicação entre a mão e o cérebro? 
Afigura – se que a criança deve continuar a aprender a escrever e a ler, sendo utilizados nessas aprendizagens os recursos simples de todos os tempos: cadernos, lápis,  livros. Mas não creio que a escola deva cortar cerce com os instrumentos tecnológicos de que eles trazem já conhecimento e perícia. Estabelecer a conexão entre a prática ancestral de um saber fazer centrado no livro e a recente aquisição de processos tecnológicos, capazes de estimular áreas cerebrais antes incipientes, pode ser o segredo de desenvolvimento do humano e a sua afirmação para além das máquinas. Pode ser que, daqui a algumas décadas,  os livros, tal como ainda os conhecemos, tenham ficado obsoletos e não representem já um papel predominante nos locais de aprendizagem.  Há todo um conjunto de estudos que apontam nessa direcção.  Mas eu creio firmemente que o sistema de ensino deve manter esse recurso inestimável, pugnar para que o livro, impresso com tinta e em papel,  prossiga na sua função. Não pode, contudo,  resumir-se aos livros a busca pelo saber. 
Quando assim me exprimo, não tenho em vista somente os recursos audiovisuais e tecnológicos que, aliás,  há muito fazem parte dos apetrechos de qualquer escola. Refiro – me a tudo o que, existindo, materialmente,  fora do edifício, circundando o espaço físico da construção,  onde se sucedem salas de aulas, corredores, gabinetes,  recreios, bibliotecas,  diz respeito intrínseco à aprendizagem. 
“Ser homem do seu tempo” obriga a sair das salas de aula para investigar o que exista ao redor.  Não basta projectar filmes ou documentários, mostrando o que ocorre pelo mundo e permanecer na sala de aula, é necessário sair, caminhar em direcção aos sítios onde a vida se desenrola e de onde vem e para onde vai o aprendiz. Ele deve assistir à vida,  sendo parte dela e não observando – a,  passivamente, encerrado numa redoma.  Decerto deixarão de ser importantes todos esses edifícios onde as crianças assistem a aulas, mais ou menos entediadas, e, tarde ou cedo, a sala de aula deverá ser substituída por uma espécie de laboratórios vivos onde elas aprendem  a perceber quem são,  observando,  experimentando, diversificando práticas. 
Aprenderão a continuidade entre elas próprias e o resto do mundo,  não somente porque o leram ou viram representado mas sim porque estiveram nele, participativamente. A seguir poderão fixar experiências,  escrevendo-as, porque adquiriram essa competência, desenhando – as porque a mão encontrou esse caminho, inventando novos mundos porque a imaginação cumpriu o seu desígnio. 
Falo, pois, de uma escola aberta ao exterior, sem muros ou paredes isoladores da vida que pulsa lá fora e deve ser a força motriz de todo o ensino. Desse modo,  as crianças apreenderão o mundo em que vivem e de que reconhecem fazer parte, terão direito à participação nele de um modo efectivo, não terão necessidade de esperar anos até poderem ocupar um lugar no mundo: porque a escola,  abrindo-as  ao tempo e ao espaço,  lhes outorgou bem cedo essa possibilidade. 
Ao longo do tempo, nesta pesquisa e investigação práticas do que é o mundo, o seu mundo, a criança e o jovem estarão cada vez mais capazes de entender qual vai ser, aí, seu papel  e descobri-lo -ão com extrema facilidade: porque desde cedo mantiveram o contacto com ele. 
Pode parecer utópica esta caracterização sumária do que deve ser a escola e de como deverá orientar – se o sistema de ensino. Apesar disso, e embora possa levar muito tempo até que todos se convençam da premência de mudar o sistema, esta abordagem é  uma meta possível.  E creio firmemente que muitos dos problemas de que se queixam os professores, as famílias e outros agentes sociais ligados à escola, cessariam inevitavelmente. 
Há indisciplina,  é um facto, e  tem de haver. Uma sala de aula é um espaço inóspito e apertado, as crianças sentem as suas energias bloqueadas, demasiados estímulos externos lhes solicitam a atenção e o desejo. Abram – lhes as portas, deixem-nos aplicar as forças anímicas em actividades que elas possam sentir como suas – e não haverá mais indisciplina.  Também há desinteresse pelas matérias e as crianças mostram o tédio em muitas atitudes e respiram de alívio quando a aula termina. Impliquem – nas a sério nos actos de aprendizagem,  dêem -lhes tarefas e façam -nas desenvolver temas que lhes digam,  essencialmente,  respeito – e o tédio dará lugar ao entusiasmo. 
Sei de tudo isto porque o fiz, durante muito tempo – até o sistema que nos governa decidir aniquilar o livre pensamento e apertar uma mordaça a professores e alunos. Não sei até que ponto eles sentiram esta opressão e o esvaziamento progressivo da tarefa recíproca que envolve a díade,  docente/discente. Quando comecei a perceber que o modo como fui impelida a tratar a disciplina suprema do pensamento,  da crítica,  da autonomia,  da preparação para a vivência na sociedade, no mundo – falo da Filosofia – a esvaziou totalmente do seu poder, percebi também que estes meus alunos de agora podem sair de uma aula minha alienados. E ainda que, se acaso lhes perguntarem o que estiveram a tratar na aula, eles não tenham nenhuma resposta a dar.
Tenho, pois, as duas experiências : estive para além do meu tempo e pude trazer a Filosofia à vida, fazendo com que as minhas lições tivessem o poder de perdurar na direcção seguida por muitos alunos.  Entretanto o tempo recuou e obrigou – me a ser a professora que não sou; e é por isso que entendo os alunos na sua indisciplina,  no seu tédio e desinteresse e sei como seria possível salvá – los, salvando,  eventualmente,  o mundo dos homens. 

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