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O ESPELHO DA ESCRAVIDÃO

 Sejamos honestos, que por esse calcanhar de Aquiles não irá mal ao mundo. Umas purpurinas aqui, uma t-shirt ali, um vinho acolá, um petroleiro a atracar, relógios-de-ponto a rodos, enfeites que irrompem do plasma, feitos da farmacologia e zarabatanas, mestres-escola e códigos-de-barras, marinheiros-de-água-doce, comentadores de fim-de-semana, promessas, pagelas, esmolas e chico-esperteza, soldados e mercenários, eis a caldeirada, a democracia, a nossa natureza a temperar dentro do caldeirão onde se servem a liberdade, a justiça e a paz. Cheira a podre, custa-nos sermos homens que logramos sorrir, beijar, amar, inventar neste palco onde a urze floresce, a águia voa, o mar se encapela e espuma, o diamante resiste e o céu nos desafia. Parece que fomos talhados sobre um tronco em cinza, plantados num chão estéril, que sonhamos voar sem sermos dignos das asas. Se era este o desígnio divino, esse Deus falhou, falhou Ele, nós e o plano de uma Humanidade digna da música que ainda compõe, dos versos que ainda escreve, das telas que ainda pinta e das esculturas que ainda ergue. Testamentários sem argumentos para o nosso testamento, fomos capazes do mais belo, mas as nossas armas são já a consciência da nossa fraqueza e dos ódios que temos sob a pele. Um dia, um dia em que seremos História, algo se dirá acerca da nossa insanidade, do desinteresse que reveste os nossos actos, mas este tempo irrepetível é o da guerra e da escravidão que só nós podemos rasgar, gritando e, muito ao de leve, colocando sementes na boca que diz aventura. Filosofia e outras teorias não bastam aos pobres, arte também não, ciência é para poucos, que amanhã é dia de ordenado, depois-de-amanhã de pagar a luz e o que sobrar dá para as purpurinas, a t-shirt, o vinho e o mais que o dinheiro faz da nossa insignificância. Há ventos que sopram sobre a nossa casa, e há ventos que nós sopramos no gesto mais simples duma saudação. Sejamos honestos.

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