“A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exactamente em ti.”, Valter Hugo Mãe, A Desumanização.
A vida por caminhos insuspeitos correndo sempre, a vida toda a inventar caminhos de felicidade. E nas bordas dos caminhos: a desilusão, a dor, a morte. Mas, ainda assim, a valer a pena toda essa invenção: ficcionar o que vai na alma da vida real, tornar ficção tanta filosofia pela essência das coisas, tantas razões do ser e do estar, tanta metafísica – para parecer real, para, quem sabe, insistindo, expurgar o mal, e tornar-se, enfim, real.
“O paraíso são os outros”
No passado dia 14 de Abril, a Associação De Beneficência – Cineteatro Raimundo Magalhães, em Vila Meã, Amarante, recebeu o escritor Valter Hugo Mãe, e o dia, que há tanto tempo chovia, fez luz e calor, fez Primavera.
A BIRD Magazine esteve lá representada, na minha pessoa, por vontade expressa do seu editor Ricardo Pinto, missão à qual o escritor Valter Hugo Mãe assentiu com a amabilidade que o caracteriza. Era eu também a pessoa incumbida de conduzir, em palco, a “conversa” com o escritor prevista em cartaz para esse dia. Deram-me essa imensa honra e responsabilidade, que eu prontamente vi como um desafio e aceitei. Este texto, que agora redijo para a BIRD Magazine, é um pequeno relato das impressões que este encontro deixou. Porque o grande objectivo da vida, para o escritor Valter Hugo Mãe, é o encontro.
Foi também o escritor que, numa entrevista, referiu que “Mais do que as casas que nos guardam e o dinheiro que nos pode sustentar, pertencermos a alguém é verdadeiramente a estrutura da vida”. A vida é esse viver para o outro, nesse espaço onde realmente poderemos encontrar a felicidade, o paraíso. O paraíso são os outros, a começar nas crianças, nos velhos, nos pássaros, sendo que:
“a humanidade acontece
às crianças e aos
velhos
resto disso há um
bicho com ocasional
adorno sentimental”.
“publicação da mortalidade”
Há um retorno de Valter Hugo Mãe à poesia, se bem que dela nunca terá saído, visto que toda a sua obra é pautada por um tom lírico bem conhecido dos leitores.
Neste volume de poesia reunida foi necessário de tudo um pouco, como na vida: criar, recriar, cortar, deitar fora. Como na vida. O que é terno e o que é efémero? É esta uma inquietação de todo o pensador. O livro, de certa forma, eterniza, pela palavra, mas é necessário também reinventar o que já se viveu (neste caso, o que já foi escrito) e, por vezes, cortar com o passado, deitar fora coisas que tivemos e fomos. Sem medo. O poeta Valter Hugo Mãe não tem medo dessas mudanças. E foi com este espírito que organizou a poesia reunida “publicação da mortalidade”. Nela, nesta tão óbvia mortalidade do que somos, perpassa toda uma dimensão espiritual, como, de resto, em toda a obra de Valter Hugo Mãe. Deus surgindo como “animal litúrgico” necessário ao mundo, o deus castigo e o deus salvação. A fé necessária, movendo montanhas. Porque, independentemente do nome que damos àquilo em que acreditamos, é bom pensarmos que não fomos abandonados. É boa essa espera-esperança.
O amor na frente e no fim de tudo:
“todas as guerras estão
infectadas pela
expectativa do amor”.
Afinal, todos temos um “inimigo cá dentro” que nos impulsiona e trava.
A felicidade, para existir, tem que ser revolucionária, porque requer luta, trabalho, pensamento e acção.
A felicidade está no encontro, no outro.
A solidão não pode ser um objectivo humanizante. A solidão só faz sentido enquanto estágio, instrumento necessário para algum tipo de maturação. Nós só fazemos sentido em plural.
“Mães, pais, filhos, outra família e amigos, todas as pessoas são a felicidade de alguém, porque a solidão é uma perda de sentido que faz pouca coisa valer a pena.” (“O paraíso são os outros”). No mundo global existe muita solidão.
O poeta faz caminhos insuspeitos de dúvida, paixão e busca. Aquilo que define o poeta e é mais profundo tem um aspecto grave, por isso a poesia de Valter Hugo Mãe é frontal. O poeta tem que estar disposto a entregar ao poema tudo aquilo que o define.
A escrita permite a Valter Hugo Mãe, em experiência, uma certa educação para os outros – a literatura como processo ilusório, o viver iludido como cura.
O sonho é o que nos livra de muito mal e sofrimento. Por isso, o poeta sonha libertar os pássaros coloridos presos no desenho da folha de papel. O poeta é esse libertador de pássaros.
Os versos citados são do livro “Publicação da mortalidade”; as restantes citações pertencem ao livro”O paraíso são os outros”.