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Cultura, Literatura e Filosofia

SORTILÉGIO ALQUÍMICO

A noite tem um movimento próprio, mesmo quando nada se mexe, e chama-nos a todos para um deserto líquido onde flutuam embarcações, serenos mensageiros de outros territórios quando a luz esculpiu memórias e mitos.
Eu sei (sempre soube) que a verdade não tinha qualquer poder, essa verdade que os corvos levantam na poeira dos trigais, se poeira houvesse, e enquanto escutávamos a voz irremediável de qualquer ente desabrido nas esferas de um segredo (se segredo houvesse): porque de dia toda a voz se dispersa em torrentes de euforia e só a noite rende o suspiro da alma, em trepidação vagueante, em movimento de acaso.
Por isso (atrás sempre atrás) trouxe comigo o negrume, esse que me empresta uma cintilição que nem sequer é luar reflectido em paredes espelhadas ou luz moribunda de um sol consumido, mas o brilho próprio de um espírito aceso, aberto para despertares e ecos e loucuras.
Vibrantes e esparsas adejavam cordas prisioneiras, desfeitas em pequenas clareiras de planície, cordas, mas de corações enaltecidos, cordas feitas artérias e veias por onde pulsa o sangue primordial de deuses olvidados nos côncavos de outrora. Nem tu (nem eu) (nem eles) havíamos previsto a tempestade; mas nada nos desviou da senda, uma vez cumprida a memória, essa que nos rende o presente e nos lança o futuro em pazadas silenciosas de húmus fecundante.
E quando, por fim, as raízes romperam no solo embravecido, dando lugar a uma serena vibração de sombras verdejantes, todos vislumbraram o prenúncio do tempo a apontar o norte, sempre o norte, como se o sul houvesse perdido o deflagrar da aurora. Mas não: é na noite que o movimento encontra a vida, a noite estreme, sem luar, sem pequenos luzeiros vindos do infinito, a noite – sortilégio alquímico corrente do ser.
(E se houver sentido no pensamento altaneiro tecido nas escarpas da noite, esse será sussurrado a todos os ouvidos porque todos foram feitos para ouvir; mas apenas um ou dois saberão compor as notas dispersas da sinfonia e romper com ela o silêncio extático de qualquer solidão).

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