O mundo só poderá ser salvo, caso o possa ser, pelos insubmissos.
André Gide 1869-1951, escritor francês. Nobel da Literatura em 1947

Não tive o prazer de conhecer pessoalmente o Senhor José Guilherme de Sousa, uma das figuras mais fascinantes da minha terra no Século XX, insigne empresário arcoense na indústria de serração de madeiras, e única personalidade de Cabeceiras de Basto que, a par de Elísio de Azevedo, comprovadamente, participou em reuniões e nos movimentos organizados da oposição a Salazar e ao regime do Estado Novo. Preso várias vezes e interrogado pela temível Polícia Política do Estado Novo, que “monitorizava constantemente os seus movimentos”, que privou com Agostinho Neto, futuro Presidente de Angola , que chegou a transportar a Paris, empresário bem sucedido num país “mergulhado numa ditadura” desde 1926, José Guilherme escolheu sempre o caminho mais difícil da vida, que lhe trouxe inúmeros dissabores, ao estar na oposição a Salazar, porque acreditava na Democracia, na igualdade, num país com acesso universal à Educação e Saúde, bem como, na justiça social. Os relatos que me chegaram sobre o seu percurso cívico e político foram, primeiro, através do meu avô, Silvino Teixeira, mas particularmente do meu pai, que conviveram com ele e de quem o Sr. José Guilherme, foi amigo e, no caso do meu pai, uma espécie de “padrinho político” no seu primeiro discurso público, numa sessão de esclarecimento organizada pelo próprio ex. combatente anti-fascista, realizada poucos dias depois de 25 de Abril de 1974, no Sábado imediatamente a seguir à revolução, na Casa do Povo de Arco de Baúlhe. Na altura, recorda o meu pai Gaspar Teixeira, “eu deveria ter uns 29 anos, estava a fazer estágio pedagógico no Porto, pois naquele tempo havia aulas aos Sábados de manhã. Quando cheguei a Cabeceiras, por volta das 13 horas, o Sr. José Guilherme estava à minha espera à porta de casa na Praça da República. Após uma saudação efusiva, que era comum sempre que nos encontrávamos, disse-lhe: “está de parabéns” pelo sucesso das operações militares que dias antes tinham colocado um ponto final a 48 anos de ditadura. José Guilherme, respondeu de imediato:
“Dr., eu não estou de parabéns. Estamos todos de parabéns!”.
De seguida, o meu pai perguntou-lhe qual a razão da sua visita, ao que o empresário arcoense respondeu: “logo mais haverá uma sessão de esclarecimento na Casa do Povo de Arco de Baúlhe, que eu estou a organizar que terá a presença do Dr. Santos Simões e do Dr. Mota Prego (conhecidos oposicionistas e integrantes da oposição ao regime). Quero que o Dr. Gaspar faça uma intervenção em representação de Cabeceiras de Basto”. Já surpreendido pelo convite, o meu pai replicou:
“ – quem deve falar em representação desta terra é o senhor, porque sempre lutou e acreditou na mudança do regime”. “– Conheço bem a sua família, o seu pai e sei que sempre estiveram do nosso lado”, respondeu José Guilherme. “Logo à noite, espero por si na Casa do Povo”.
Conta-me o meu pai, que aquele convite, do qual não estava à espera, deixou-o surpreso e com um “nervoso miudinho”, porque era uma enorme responsabilidade falar das expectativas do povo na mudança democrática que dias antes tinha acontecido e, porque manifestamente, nunca tinha discursado em público. À hora marcada, desse longínquo Sábado de Abril de 1974, a “Casa do Povo” de Arco de Baúlhe estava “cheia” de pessoas que lotavam o espaço até à Rua do Arco e aglomeravam-se no largo fronteiro. O meu pai foi “furando” pela plateia e José Guilherme, fez-lhe sinal para subir ao palco. “Eu levava um discurso escrito” sobre a minha visão do que deveriam ser as prioridades no novo regime democrático e perguntei-lhe se o queria ler primeiro, ao que ele respondeu de imediato”: “Dr., não preciso de ler o que escreveu.
A censura acabou!” .
Minutos depois e já no final de ter lido uma intervenção previamente escrita, que foi aplaudida, o meu pai sentou-se e perguntou ao Sr. José Guilherme: “- que lhe pareceu? “ – “Pareceu-me bem, respondeu prontamente, mas vou-lhe dizer uma coisa: não adianta estar tão nervoso, porque a partir de agora, vai ter que falar mais vezes”. À distância de quase 44 anos, recorda o meu pai, este veredicto do homem que lutou dezenas de anos contra o regime do Estado Novo em Cabeceiras de Basto e indicou ao então Governador Civil de Braga (Dr. António Sampaio), a primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto (recusando o exercício do poder, mesmo tendo tido possibilidade de o exercer “porque (como afirmou aos amigos) tinha mais que fazer”), esta primeira impressão sobre o “batismo oratório” do meu pai, foi “premonitória”, pois haveria, depois, nos meses seguintes de 1974, de acompanhar algumas vezes José Guilherme, juntamente com o seu filho e amigo de sempre, Manuel António, (num tempo em que a maioria dos partidos ainda não estavam legalmente institucionalizados), em reuniões preparatórias pelo distrito de Braga, do Movimento Democrático Português e mais tarde, de se envolver na fundação da secção do PS em Cabeceiras, sendo eleito como primeiro Vereador na primeira Câmara Municipal escolhida democraticamente pelos Cabeceirenses, presidida pelo Sr. Valdemar Gomes e, mais tarde, em Junho de 1977, assumindo a Presidência da Câmara até Janeiro de 1980, sendo depois, eleito Deputado à Assembleia da República nas eleições legislativas realizadas em 25 de Abril de 1983, no decurso das quais Mário Soares haveria de liderar um governo de bloco central . Desse período em que presidiu à Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, o meu progenitor recorda-se que “às segundas-feiras, pela manhã, era comum o Sr. José Guilherme deslocar-se à vila, e à distância de mais de quatro décadas, estou a visualizá -lo de jornal debaixo do braço, como habitualmente, a entrar no meu gabinete de trabalho (o que era frequente) parando à porta, sorrindo e exclamando: “Então Presidente? Como estão as coisas?”
A extraordinária intuição política de José Guilherme Sousa e a sua enorme dimensão humana, o desapego ao Poder, eram características muito próprias da sua personalidade e foram determinantes para convencer muitos concidadãos a aderir à resistência a Salazar. Em 1957, com apenas 12 anos, o meu pai recorda-se que no auge do Estado Novo, um pouco antes do “terramoto político” Humberto Delgado e das eleições presidenciais de 1958 (onde José Guilherme teve participação empenhada na mobilização masculina para o ato eleitoral, pois as mulheres não tinham direito a voto) que haveriam de fazer “tremer o regime”, José Guilherme ao passar pelo alto da Cachada, conduzindo o seu carro à frente de um camião carregado de madeira, convenceu o meu avô Silvino e o meu tio avô Gaspar Miranda de Paredes, a aderir às ideias da oposição democrática: “isto está por dias”, “o homem (Salazar) vai cair” como sempre recordava aos interlocutores: “Silvino, tu é que nos podias ajudar!”. O meu avô, que tinha sido preso pelas tropas franquistas na guerra civil de Espanha (para onde emigrara a pé aos 11 anos), com apenas 17 anos nas Astúrias, e esteve “encarcerado” por 5 meses, no ano de 1937 correndo o sério risco de ser fuzilado, com a acusação de que colaborava com a esquerda republicana, tinha sido neutralizado e confundido pelos militares franquistas, quando conduzia o camião da empresa para a qual trabalhava, transportando os “cadáveres republicanos” do conflito sangrento, para o cemitério, respondeu: “Sr. José Guilherme eu até gostava de ser mais ativo e como sabe, tenho uma enorme admiração por si e simpatizo muito com as vossas ideias. Mas tenho filhos no Colégio (na altura pagava-se para estudar), tenho como sabe, uma pequena empresa e tenho sempre as finanças atrás de mim, para pagar os impostos “relaxados” a tempo e horas. Nem sempre consigo e como deve imaginar, teria pouco tempo para o ajudar, porque a minha vida não o permite. Mas conte comigo, no que for possível”. José Guilherme, hábil na argumentação política respondeu: “mas é por isso que queremos a Democracia. Se isto mudar e vai mudar, o ensino será gratuito e para todos e os impostos irão descer para que se criem mais empresas e empregos”. Estas passagens que acabo de recordar envolvendo a relação entre o Sr. José Guilherme e familiares meus, refletem bem a importância e singular dimensão política do Homem, antes e depois do 25 de Abril, onde se assumiu como uma figura fundamental na transição democrática no nosso concelho, ao desempenhar uma importância decisiva na nomeação da primeira Comissão Administrativa da Câmara de Cabeceiras logo a seguir ao 25 de Abril. Estávamos em 1957 e o 25 de Abril só haveria de chegar 17 anos depois. Mas foi devido à resiliência, consciência do bem comum e capacidade de resistência de homens como o cidadão Cabeceirense José Guilherme de Sousa que hoje, felizmente, vivemos numa democracia. 44 anos depois, o balanço é extremamente positivo. Valeu a pena! Fica aqui o meu sincero agradecimento a este meu conterrâneo, que pela sua ação, mas fundamentalmente pelo exemplo, encarnou os valores mais nobres que estiveram na origem do 25 de Abril e assumiu-se como um dos “Grandes Cabeceirenses do Século XX”.
Agradecimentos: Teresa Sousa (neta) e José Guilherme Sousa (bisneto) pelas fotos. Página “Crónica Arcoense” de onde foram retiradas “imagens do Arco de Baúlhe” nas décadas de 50 e 60 do século XX