Longe de tudo aquilo que foi, finge que contempla a rua, sentado na cadeira junto à janela, onde afoga agora os seus tristes dias.
Escondido por detrás de um vidro, sente-se transportado no tempo para a luz e para as cores daquele mundo que agora corre lá fora.
Todas as palavras que ouve dentro da sua cabeça, todos os olhares que as memórias fazem regressar, rasgam feridas purulentas no coração dessecado do homem sentado por detrás do vidro.
Longe de tudo aquilo que foi, recorda todas as vidas que se perderam. Morreram pais, irmãos, filhos, primos, sobrinhos, vizinhos, netos e amigos, homens e meninos…
Soldados todos eles, ocupando posições naquele campo de batalha por entre o breu que a carne desfaz, descobriram que ali não existiria pai ou mãe que pudesse apaziguar a dor de quem vive afogado naquele mar de medo.
Recorda como se fosse hoje, a noite em que confundiu a lua com as estrelas e viu o céu tornar-se escarlate numa explosão de corpos flamejantes.
Longe de tudo aquilo que foi, vive com aqueles olhos sombrios presos a todas as imagens que lhe dilaceram o sono dos dias mansos.
Preso a uma cadeira, sente que o jogo se perdeu no seu rosto despido de vida. Hoje é apenas um homem sentado por detrás do vidro.
Agora ele sabe que não mais pode fugir das suas memórias entrincheiradas, porque a justiça irá para sempre persegui-lo.
Onde estão os homens ricos que agora já não pode ver?
Onde estão os homens ricos que lhes prometeram vida e paz?
Onde estão, agora, esses homens que só acreditavam numa verdade e que juraram que a vitória seria certa?
Diziam, aos jovens soldados, que Deus e a glória estariam com eles, que nada teriam a temer e que voltariam todos para casa, sãos e salvos, porque eram irmãos de guerra e de sangue.
Mas Deus não quis participar em mais guerras, os heróis transformaram-se em vítimas e ninguém os pôde salvar do julgamento que se aproximou naquele fim de mundo.
Hoje, ele sabe que não voltará a acordar da escuridão em que caíram, para sempre, os seus olhos, que não se voltará a levantar-se daquela cadeira, que não mais voltará a ver o seu rosto.
Muitos anos se passaram desde aquele dia e sabe que está muito longe daquilo que um dia foi porque hoje é, apenas e só, um homem sentado por detrás de um vidro.