Nas últimas décadas, poucos aspectos da fisiologia humana despoletaram tanto interesse científico como a interacção entre a microbiota intestinal, população de bactérias que habita o intestino (antigamente chamada de flora intestinal), e o ser humano, seu hospedeiro.
É caso para dizer que há um admirável mundo novo por descobrir nas nossas entranhas: novo, porque só recentemente se começou a olhar com detalhe para a actividade destes seres anónimos e microscópicos que habitam o nosso intestino; admirável, porque interage connosco de forma tão abrangente que parece estar implicado, virtualmente, em todas as situações fisiológicas e doenças de que se conseguir lembrar: do stresse ao cancro, passando pela depressão, diabetes, doença de Parkinson, obesidade, autismo, envelhecimento, alergias, doenças cardiovasculares e inflamação (lembra-se de mais alguma doença? Essa também está, provavelmente, associada ao intestino).
O que se sabe deste mundo
Comecemos pelo básico: digerir alimentos, absorver nutrientes e eliminar resíduos são três funções essenciais do nosso aparelho digestivo. Também se reconhece, há muito, o papel importante das bactérias intestinais na digestão, absorção de nutrientes, produção de vitaminas e, ainda, na função imunitária como parte da barreira intestinal à entrada de microrganismos e substâncias causadores de doença.
O que é novo neste mundo
O intestino e seus habitantes são, em boa verdade, demasiado complexos para actuar apenas no processamento dos alimentos. Desde logo, o nosso canal alimentar com cerca de 9 metros, que se estende do final do esófago até ao recto, está impregnado de células nervosas. Esta rede de neurónios é tão extensa e importante, que o intestino é mesmo apelidado de “segundo cérebro” ou “pequeno cérebro” (de seu nome científico, sistema nervoso entérico). Não porque o seu intestino faça cálculos matemáticos, tenha aspirações religiosas ou tome decisões, não (isso é mesmo com o “big brain”). Porém, ainda que não pense, este nosso segundo cérebro condiciona o humor, as emoções, a memória e o pensamento, através da comunicação com o primeiro cérebro. Não é propriamente uma surpresa que o nosso cérebro (o primeiro, o grande) condicione a digestão; basta pensarmos nas vezes em que a ansiedade, raiva, tristeza ou stresse nos fizeram sentir o “nó” na garganta, “borboletas” na barriga, cólicas ou mesmo vómitos. Aliás, só o pensamento de comer, faz como que o estômago se antecipe na produção de secreções, mesmo antes de comermos. Isto até sabíamos. O que não sabíamos, e que as recentes pesquisas nos dizem, é que a comunicação é bidireccional, isto é, funciona em ambos os sentidos. Desde logo, sabe-se hoje que no intestino sao produzidos mais de 30 neurotransmissores (substâncias químicas produzidas pelos neurónios e que transmitem informações), incluindo 95% da serotonina total do organismo (químico que regula o humor, sono, apetite, ritmo cardíaco, temperatura do corpo e sensação de dor).
Assim sendo, da mesma forma que um cérebro transtornado envia sinais ao intestino, um intestino perturbado envia mensagens ao cérebro. Eis, pois, que a ansiedade, depressão ou stresse, podem ser tanto a causa como a consequência de desequilíbrios no nosso intestino. Faz-nos pensar também que, se os dois cérebros comunicam entre si, as terapias que ajudam um, ajudarão, provavelmente, o outro.
Estas interacções resultam principalmente da composição da microbiota intestinal, uma espécie de rede social complexa composta por mais de 100 triliões de bactérias, cujas implicações na saúde e na doença vão ainda além do condicionamento das emoções e demais funções cognitivas. Neste âmbito, são vários os estudos que estabelecem uma relação frequente entre as perturbações do intestino e autismo, doença de Parkinson e resposta ao stresse. O segundo cérebro condiciona também o metabolismo, aumentando ou reduzindo o risco de diabetes; regula a inflamação, não só no intestino como em todo o organismo (inflamação sistémica), aumentando o risco de doenças inflamatórias (síndrome do cólon irritável, doenças inflamatórias intestinais, doenças cardiovasculares ou auto-imunes, como a artrite reumatóide, por exemplo); e interage com a imunidade. Também se observa uma clara associação entre uma população intestinal pobre e a obesidade, sendo que pessoas magras têm uma microbiota mais numerosa e variada.
Cuidar do intestino, equilibrar o organismo
Em pessoas saudáveis, a composição da população de bactérias intestinais é relativamente estável, mediante dieta e ambiente constantes, apesar de ser diferente entre indivíduos, fazendo com que cada pessoa apresente um perfil de microbiota praticamente único. Ainda, sabe-se que a diferença entre ter um intestino saudável ou não saudável, não tem a ver com a existência de um tipo particular de bactéria, mas sim com a diversidade. Cuidar do intestino através da manutenção de uma microbiota equilibrada é, hoje em dia, reconhecido como fundamental para prevenir doenças e manter o equilíbrio de todo o organismo.
A alimentação assume aqui um papel fundamental, pois as mudanças no que come podem alterar significativamente a comunidade intestinal, para o bem ou para o mal. Uma dieta rica em gorduras animais e pobre em fibras conduz a alterações negativas, enquanto uma dieta pobre em gorduras e com alto conteúdo em fibras (cereais integrais, frutas e legumes) tem um papel protector. Por outro lado, o consumo de alimentos probióticos (contendo microrganismos vivos que contribuem para o equilíbrio do intestino) influencia positivamente a microbiota residente. Os probióticos são até uma recente moda alimentar, pelos melhores motivos, e podem ser incluídos na composição de uma vasta gama de produtos, que varia entre medicamentos, suplementos alimentares e alimentos tradicionais, como os lacticínios, particularmente alguns queijos, iogurtes, leites fermentados e o famoso kefir, ou os legumes fermentados (soja, chucrute, picles…). Temos também outra classe de alimentos, os prebióticos, que servem de alimento às bactérias intestinais, estimulando o seu crescimento e a produção de substâncias benéficas, sendo o mel e as leguminosas dois bons exemplos de prebióticos.
Ainda no âmbito das terapias para beneficiar a microbiota intestinal, falemos do transplante fecal. Tal como o nome indica, trata-se de transplantar fezes (e suas microbiota) de indivíduos saudáveis para indivíduos com uma microbiota pobre. Apesar de se utilizar (apenas em alguns países) sobretudo para auxiliar no tratamento de infeccções intestinais graves, este tratamento, de nome feio, deixa em aberto a possibilidade de aplicação a outros casos, como a obesidade ou a depressão, por exemplo.
Em suma, creio que não há dúvidas da importância da microbiota intestinal nos processos de saúde, doença e bem-estar geral. Ainda que não haja, na maioria dos casos, uma relação causa-efeito, há uma indiscutível associação (directa e indirecta), motivo pelo qual a ciência está (e eu também) deslumbrada e empenhada em explorar este novo mundo de possibilidades de intervenção na saúde através da manipulação da composição das bactérias do seu intestino. Quanto a mim, há muito que, como profissional de nutrição, incentivo a alimentação saudável, em geral, e o consumo, em particular, de alimentos probióticos, no respeito pelos hábitos alimentares de cada pessoa.