Cultura, Literatura e Filosofia

O OUTRO

Perdes-te no outro e esqueces-te de ti.

Da tua boca tanta gente, tantos episódios, tantas vozes graves e agudas que se apartam da tua.
Junto de colegas e amigos, ocupas o teu tempo com o teu chefe insuportável,  com o namorado irresponsável, com os colegas e a permanente intriga ou com aquele familiar que vive com o rei na barriga.
Reproduzes histórias, deturpas factos, exultas emoções, gesticulas e imitas vozes, tentanto aproximar-te de cada uma das personagens que pretendes representar, no teatro em que reproduzes, para outros, alguns episódios da tua vida.
Quando páras para fumar, representas, quando vais almoçar, voltas a fazê-lo, quando falas ao telefone, continuas e quando entras em casa, mais do mesmo.
E assim ocupas o tempo, esquecendo-te de ti, do que és, do que gostas, dos sonhos que te atravessam.
Fazes da crítica ao outro, o tempo cheio, preenchido do nada que consubstancia o diz-que-disse. E tu, quem és? O que podes melhorar?
Porque alimentas dentro de ti, e no precioso tempo de que dispões, aqueles que tanto críticas?
Porque não sonhas nas músicas que ouves e não levas os outros contigo a sonhar? Porque não viajas por livros, museus, ruas, lugares? Porque não levas os outros contigo a viajar?
Porque alimentas de toxicidade a tua mente? Porque tornas bífida a língua que poderia ser doce? Porque é que afogas a sede na única parte do copo que está vazia?
Dói? Aborrece? Irrita? Satura? Passa por cima. Falar, desabafar, nem sempre ajuda, porque a palavra é veneno que mata e do mal que a ti próprio fazes, não há quem te acuda.

One thought on “O OUTRO

  1. Olá Raul,
    Um texto que me fazes refletir sobre a realidade do nosso dia-a-dia. Uma realidade em que muitos deixam de viver a sua vida e passam a viver a vida dos outros. Será que a vida dessas pessoas é assim tão desinteressante ou simplesmente é mais fácil viver assim, na sombra da crítica negativa?
    Gostei muito do que li, muitos parabéns pela forma como trataste este tema.

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