Não tenho qualquer problema em assumir-me como um homem das coisas simples e, simplesmente, me considerar assim. Bebi essa linearidade dos dias, pela infância que me foi oferecida na espontaneidade do que havia. A terra era o meu chão material e meu chão filosófico. É do solo que busco as raízes que me seguram à vida.
Queria ir ao centro da terra.
Com doze ou treze anos, atirei-me para essa viagem. Marquei um ponto no chão, com um objecto que não recordo, defini um raio, que mais tarde medi, tendo um metro e oitenta. Com uma pá iniciei a escavação com a precisão que o caso merecia. A minha pele tinha a pele da poeira, o meu suor era a respiração do chão. Para chegar ao centro da terra, percebi a certa altura que tinha de ter ajuda. Jamais conseguiria expulsar cada pedaço de terra quando a minha altura desaparecia na profundidade crescente do buraco. O meu irmão, mais novo um ano e pouco, aceitou desafio de içar a terra que eu desbravava lá no fundo. Os dias sucediam-se e a aventura de chegar ao centro da terra continuava. Dei por mim sendo engolido pela cintura negra da parede redonda e geometricamente elaborada de esgravatar para o fundo. Era verão. A frescura do fundo contrastava com o calor da superfície. Eu abria caminho, o meu irmão garantia que a terra chegava ao cimo.
Para mim, ir ao centro da terra, significava cortar o solo até a água fresca e cristalina jorrar de um qualquer orifício. Tinha o sonho de descobrir água, de abrir a fenda que faria jorrar o líquido mais precioso. Ninguém sabia disso. Era um projecto pessoal como quem quer descobrir a lua e nela poisar.
Um dia, a profundidade de cerca de dez metros, equivalente à altura de três andares, tornou-se para mim um dia inesquecível. Eu não sou bom a guardar memórias! Era de tarde. Estava no fundo do meu poço. O meu irmão foi dar uma volta, indicando que voltaria rapidamente. Não voltou rapidamente. Vendo o tempo passar, olhei mais uma vez para cima, via o céu azul pelo buraco que sendo largo se estreitava no topo e não via mais nada. Chamei o meu irmão. Não obtive resposta. Tive medo. Aninhei-me junto ao chão olhando a terra húmida e fria. Estava sozinho com o meu centro da terra. Talvez estivesse de calções e descalço, simplesmente. Mexi no chão, a terra tornava-se empapada, e das entranhas borbulhou um pequeno fieiro de água que foi crescendo e se expandindo claramente. Vi nascer água pela primeira vez pela obra das minhas mãos. E tive medo! Tive medo que o meu irmão não chegasse a tempo de me tirar dali antes que a água me cobrisse por completo. Ouvia dizer que quando rebenta uma nascente de água, ela pode ser extremamente rápida e despoletar uma enchente. A água foi cobrindo o chão e o meu pânico – talvez claustrofobia – aumentava a cada centímetro que subia na parede que fiz para ela. Pela primeira vez na vida fiz nascer algo que me transformou. O meu irmão chegou, rindo-se, porque foi uma partida que me quis pregar. Quis assustar-me! O que ele não sabia é que eu ia estar com a inusitada nascente e só com ela.
Poucos dias depois, a quantidade de água que nascia regava toda a quinta. O caudal era de tal forma abundante que uma máquina de extração de água de elevado caudal não vencia a nascente. Hoje ainda lá está o poço que me fez viajar ao centro da terra, engolido por silvados, como um velho à espera que alguém lhe vá aparar o cabelo e penteá-lo e perceber que debaixo daquele emaranhado há uma alma.
Talvez a minha grande viagem na vida. Precisei de uma pá, de chão e de um irmão.
Tenho de altura um metro e oitenta, nada mais nada menos que a largura do poço. Não interessa a largura dele, importante é o seu conteúdo. Aliás, como o de todos nós!