Escrever sobre a eutanásia é, sem dúvida, muito complexo. A própria palavra, de origem grega – ευθανασία , ευ “bom”, θάνατος “morte” – sugere uma espécie de paradoxo, visto afirmar como sendo bom um momento, invariavelmente, considerado mau.
Em primeiro lugar, seria necessário podermos compreender, exactamente, o que é a morte. O problema reside na extrema dificuldade de compreensão de um conceito – o de morte – quando não nos foi dado experimentá – la e, em seguida, reflectir acerca dessa experiência para conceptualizá-la.
Portanto, declarar que há uma morte boa que a prática da eutanásia poderá propiciar, por oposição a uma morte má ocorrida em circunstâncias naturais é, no mínimo, afirmar uma incoerência.
Teoricamente, observando a morte de fora (ou seja, a que acontece aos outros ) é lógico (falando, portanto, apenas de raciocínio ) considerar que, quem sofre e não tem qualquer hipótese de deixar de sofrer, deve ser libertado do sofrimento e entregue à morte. Na prática, porém, as dificuldades avolumam – se.
Nessa ordem de procedimento, levam-se em conta muitos factores, consoante os casos específicos.
Alguém está a sofrer, sabe que morrerá mais tarde ou mais cedo e pede que lhe abreviem a morte. Pede a um familiar próximo, a um amigo, ao médico. Imaginemos que somos esse familiar próximo, esse amigo, esse médico. Satisfaríamos, com ligeireza, o pedido extremo do familiar, do amigo, do paciente?
Sem dúvida, muitos responderão que sim, alegando que o familiar, o amigo, o paciente tem o direito de morrer com dignidade – ou seja: de morrer quando deseja, quando não é mais capaz de suportar a sua condição.
Outros recusarão por sentirem que tomar tal decisão comporta sérios entraves pessoais de ordem afectiva ou moral ou religiosa ou de princípios individuais.
Percebe – se, pois, nesta breve análise acerca da eutanásia, a extrema dificuldade em tomar uma decisão a tal respeito: por ignorarmos o que significa, de facto, morrer, por ser uma decisão a tomar relativamente a outrem, por fazer apelo, em nós, a uma diversidade de sentimentos e/ou perspectivas existenciais.
O problema, porém, agudiza – se sobremaneira quando se trata de legislar acerca deste tema. Pode uma assembleia política decidir se deve ou não deve despenalizar a prática da eutanásia e do suicídio assistido? Na prática, despenalizar significa retirar a conotação de crime ao acto de apressar a morte de outrem, seja familiar, amigo ou paciente. Se contribuir para a morte de alguém é assassinato, trata-se, então, de despenalizar o homicídio.
Dir-me-ão que não é assim, que serão levados em conta critérios rigorosos e situações específicas. E logo pergunto: quais?
Quem poderá arrogar – se o direito de decidir sobre a oportunidade de perpetrar a morte a outra pessoa? Os médicos? Esses juraram, publicamente, numa cerimónia preliminar ao seu exercício efectivo – o Juramento de Hipócrates – o seguinte: “Não USAREI os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça”.
Ora um dos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, o terceiro, afirma o seguinte: “Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” E o médico, preso ao seu juramento, deverá honrar este compromisso, preservando o direito à vida do seu paciente.
Porém, o artigo refere também o direito à liberdade: e se o doente em estado terminal usar o direito à liberdade e assim decidir que a morte é o que lhe convém e não a sua vida degradada? Deverá o médico ajudar o doente a morrer porque desse acto dependerá o cumprimento deste seu dever – que é um direito do doente?
Imaginemos, contudo, que o doente não tem discernimento, está incapaz, por isso, de decidir. Deve outrem tomar essa decisão por ele? Com que fundamentos?
Alegando que o doente, privado de muitas funções, não está, de facto, a viver, que é um fardo para os outros, que lhe é dada uma cama no hospital, que carece de assistência, que consome recursos? E quem terá o direito de tomar a decisão de lhe cortar a fonte da vida?
A família? O médico? Os hospitais?
Sendo despenalizada a prática da eutanásia, introduz – se um novo poder legítimo : o de decidir quando ou como alguém deve morrer. Confere – se às pessoas o direito de acabar com a própria vida, quando ela se torna difícil de suportar ou dá -se esse poder a outros quando o próprio não for capaz de o realizar.
Numa perspectiva fria e redutora, podemos encarar esta possibilidade com alguma justificação; e eu já ouvi dizer, perante a ocorrência da morte de alguém, doente e sofredor : Foi melhor assim! Ocorre – me sempre nestas circunstâncias a seguinte pergunta : Como sabem que foi melhor?
E regressamos ao início: quem, sendo vivo, sabe explicar o fenómeno da morte? Quem, estando morto, pode esclarecer o assunto, dizendo como é ser morto?
É possível, sem dúvida, especular sobre o assunto, tecer um sem número de teorias filosóficas, proclamar que deve morrer – se a tempo e ainda que aquele que está à beira do abismo deve ser empurrado e precipitado nele – foi deste modo que Nietzsche filosofou. Muitas vezes, a miséria humana de certos indivíduos, estropiados, doentes, imbecilizados, levar-nos -á a pensar: não seria preferível que estivesse morto? Talvez. Mas será que é esse o seu desejo? Será que, apesar das múltiplas deficiências ele não prefere viver?
Se alguém escolhe o suicídio, por uma ordem qualquer de razões que escassamente compreendemos, não é usual ficarmos em choque perante uma acção, deste modo radical? E se soubéssemos que, na nossa ausência, o médico decidiu desligar a máquina que mantinha vivo um familiar nosso, não ficaríamos, justamente, revoltados?
É relativamente fácil especular e generalizar, formular hipóteses e tirar conclusões, construir silogismos de uma lógica irrefutável. Viver deveria ser um processo ascendente e saudável, a doença deveria ser erradicada e a morte abolida das condições existenciais do ser humano.
Sem dúvida que há vidas miseráveis, nauseabundas, inúteis. Decerto há indivíduos que, numa ou noutra óptica, mereceriam a morte. Concerteza a humanidade ganharia qualidade se um certo tipo de pessoas, tidas como um peso, pudessem ser eliminadas.
O problema está no critério decisor, no estabelecimento da linha que separa quem deve viver ou ser entregue à morte. O problema reside na dificuldade de legislar, permitindo que a morte seja benefício e se transforme em “boa morte”. O problema radica, fundo, nos instrumentos a utilizar e nos autores considerados capazes de levar à prática a eutanásia.
Em última análise, não creio que alguém possa dizer as palavras certas no que diz respeito a este assunto, quer sejam favoráveis ou não à morte assistida. Não me parece que existam peritos capazes de decidir com justeza quando e como deve um indivíduo ser ouvido se pede a própria morte, quando e como pode terminar a vida daquele que, pela consciência já se ausentou dela – aparentemente. Porque mediocremente sabemos o que seja a consciência.
Portanto, perante tantos enigmas a rodear o fenómeno da morte, da vida, da consciência, melhor seria fazer silêncio sobre esta questão insolúvel e tentar melhorar, no contexto humano, o que está ao nosso alcance, deixando a vida, nos seus trâmites, misteriosos ou incognoscíveis, seguir o seu rumo. E, prescindir, acima de tudo, de uma legislação urdida nas arenas políticas que não deveriam nunca ser contempladas com um poder de tal modo radical.