Entrei pela casa adentro, cheia de saudades e novidades para contar. Nos últimos 8 dias tinha estado de férias, e trazia fotos para mostrar, recantos lindíssimos para partilhar, brincadeiras e experiências para reviver com ela. Era a pessoa de melhor íntimo que eu conhecia.
Na inocência dos meus 20 anos, embora já com a crueza da sua doença terminal anunciada, tinha partido para umas curtas férias, sem esperar uma evolução tão rápida em tão pouco tempo. A prima que tomava nessa altura conta dela, avisara-me que fosse com calma. Ela, sempre presente nesses dias, apercebera-se gradualmente daquilo que eu rude e abruptamente me apercebi em minutos: aquela já não era ela.
Quando entrei no quarto, estava deitada, mas o olhar não era o mesmo. Reconheceu-me, sem dúvida, mas não mostrou qualquer entusiasmo pelas novidades. Não quis, sequer, ver as fotos que tivera o cuidado de levar. Esse foi o sinal. Ela, sempre interessada, ela, sempre disponível, ela, sempre com um coração de ouro, não quis ver as fotos. “Agora não, preciso descansar, quero estar assim quietinha, a repousar.” Ela, sempre enérgica e positiva. Necessitou de ir à casa de banho. Ajudei-a, mas talvez não devesse ter oferecido o meu auxílio em níveis tão detalhados, como ajudá-la a despir-se, por exemplo. Vi-a tão frágil, tão lenta, tão hesitante, que me prontifiquei a socorrê-la, mas arrependi-me de imediato. O seu olhar, entre a mágoa de eu ter percebido a perda de capacidades dela, que ela própria já percebera muito antes, permanece em mim. Numa dolorosa memória, que me faz ter uma vontade de voltar atrás e evitar aquele constrangimento. Ela, mulher analfabeta de letras e números, mas inteligente, independente e desembaraçada, a sentir-se perder o ritmo, a energia, as capacidades.
Nessa tarde pouco falou, mas a conversa ficou, também, em mim. Não sei se estaria inteiramente consciente, se seria efeito dos medicamentos, ou aquele distanciamento que ocorre em pré-morte, ou se seria tão só aquela fase em que incapazes de assumir a realidade nos recorremos da esperança, daquilo em que acreditamos, em que fazemos fé. Dizia-me ela que o irmão dela, que tinha falecido 2 anos antes, tinha vindo conversar com ela. Que tinha estado ali. Queria tanto acreditar que fosse verdade. Por tudo: pela certeza de uma vida após a morte, pelo apoio que ele lhe daria e de que ela tanto agora necessitava, pelo conforto de não se sentir só nesta passagem.
Regressei a casa. Lembro-me de ir no autocarro a chorar. A sentir-me perfeitamente inútil por nada poder fazer. A sentir cada respiração dela, vagarosa e penosamente, minuto a minuto, a dor dela de existir, se é que se pode aplicar tal palavra, existir … Faleceu dias depois no IPO.
Nestes dias em que se discute a eutanásia, não tenho qualquer dúvida de que concordo inteiramente com essa opção. Seria preciso não ter vivido o que vivi, para pensar de forma diferente. Estando o doente consciente, sendo uma situação clínica sem resolução a curto prazo, e para a qual não se esperam melhoras, sendo causadora de sofrimento atroz, parece-me de um egoísmo extremo obrigar a pessoa em questão a sobreviver, por esta ou por aquela razão, caso não seja a vontade do próprio. O que me parece imprescindível é garantir que de facto é uma opção tomada pela pessoa em causa, sem uso pernicioso por terceiros. Salvaguardar os direitos daquele ser em fim de vida ou pelo menos em fim de disponibilidade para viver. Criação de equipa de avaliação e acompanhamento. Questões morais ou religiosas não são alheias a esta opção, mas sendo o próprio a decidir o seu destino, ele é simultaneamente responsável e vítima da situação. Ora, parece-me que não poderá ser mais legítima a decisão. Talvez seja, eventualmente, um mal menor do que a dor diária que o assola.
Vi em tempos um filme que me reforçou essa convicção. “Mar adentro” de 2004. Se não viram, não deixem de ver. É o lado humano, para além do clinico, que maravilhosamente se exprime.
A um nível diferente, ou talvez não tanto, alguns de nós relacionamo-nos frequentemente com a questão. A eutanásia animal é permitida em Portugal, em situações legítimas clinicamente designadas, como doença terminal ou perda considerável de qualidade de vida. Nesta situação, é obviamente um humano, um terceiro, que a determina, e nem poderia ser de outra forma. Mas ainda assim, penosa de decidir. Infelizmente já passei por ela, e quando eu questionava a veterinária, sobre a dificuldade em determinar quando seria a altura certa de procedermos à eutanásia, ela, fruto de anos e experiências, respondia-me: quando chegar a altura, saberás. E assim foi. Quando eu comecei a perceber o desinteresse pela vida, o esforço dos pequenos gestos, mas sobretudo o distanciamento anímico, percebi que não podia exigir-lhe mais. Chorei muito, mas chorei só eu. Ele já não podia chorar. Nem sofrer.
Nós humanos, temos a capacidade de pensar nas coisas. Temos, estando conscientes, a possibilidade de avaliarmos as situações, os sentimentos, as sobrecargas sobre terceiros, e sobretudo, a nossa vontade de viver ou de apenas respirar, mecanicamente falando. O Testamento Vital, permitindo escolhas prévias em questões como tratamentos a aplicar ou não em situações especificas ou até doação de órgãos, é o inicio da autodeterminação. Ousemos ir mais longe.