Decidi versar a temática do amor, não porque tenha dúvidas relativamente ao que tal conceito significa, enquanto sentimento – o sentimento é emoção, a emoção acontece, conceptualizar emoções é puro desperdício porque ela escapará para sempre ao rigor das definições – mas na exacta medida em que «amor» é uma palavra, enquanto palavra está carregada de simbolismo e toda uma derivação linguística, e logo filosófica, pode dela ser levada a cabo. Ora, o amor é essencialmente eros e o eros tem uma carga plástica e portanto sensível,mas também, e de acordo com a etimologia da palavra plástica, permeável a uma variedade infinita de significações. Plástica porque moldável, plástica porque erigida em obra de arte, plástica porque porta-voz de emanações profundas e subtis transvasadas pelos canais do ser na sua totalidade.
Na dupla que acede ao eros cada um dos dois tem a cega e insensata impressão de presumir sentir o mesmo e, meus amigos, esta presunção é inútil e vão egoísmo! O homem que se serve da mulher como fêmea, para nela cevar os seus impulsos, mesmo que os mascare de suavidade,ou que lhes chame carinho, não passa de um títere às sua próprias mãos, de um escravo dos seus pobres desejos e, por isso, usa o seu corpo de forma vexatória, para si mesmo e, nesse auto-uso, humilha a mulher que transforma em fêmea por consequência dessa instrumentalização irracional que faz de si próprio. Em geral, nos designados actos de amor, o macho nunca quer saber o que interessa, de facto, à fêmea com quem supostamente interage, nunca quer saber quem é ela, de facto, o que sente de facto, o que lhe acende ou afrouxa, de facto, a raiz do ser. Usa-a, e isso é baixo, e mais baixo desce ainda quando se sente, ele próprio, vilipendiado, porque a fêmea/mulher não consegue sentir entusiasmo por aquilo que é apenas a sua necessidadezinha de macho! Por isso gera-se, não a união mas sim a confusão, e o dito macho/homem ausenta-se, arrogantemente, na crença estulta de que o seu comportamento foi digno e que – pobre dele! – não foi compreendido pela fêmea que usou!
O amor que não se faz, o amor que se vive e que se sente, o amor que se reproduz em actos de grandiosidade, quer seja num filho que se gera, quer no acrescentamento do ser pelo qual nos tornamos em filhos de nós própios e filhos um do outro, esse amor não é acessível a qualquer ser, machos ou fêmeas travestidos de humanos, na exacta medida em que é necessário que cada um possa sair de si mesmo, abranger o outro na sua plena dimensão, depois esquecer-se de quem é, na correnteza inomeável das sensações e acordar mais pleno, mais lúcido, mais vivo, como se houvesse acedido à eternidade. Cada acto de amor encerra a eternidade e, se é amor, perdura para lá do instante e continua, em crescendo, como uma lua plena que não pudesse ser sujeita ao ludíbrio das fases que a minguam.
O que acabo de escrever representa o paradigma da bestialidade intrínseca dos homens cristalizados, endurecidos,incapazes de verem o outro, de tal modo se deleitam apenas na contemplação do seu próprio eu; e se o eu, assim sozinho e, necessariamente, por via disso, confinado, se vai estreitando até uma dimensão quase nula, como não hão-de parecer nulas ou medíocres todas as personagens com quem se cruza, por maiores que, de facto, sejam? A pequenez que não se auto-assume engendra pequenez em cada golpe de olhar lançado sobre o mundo.
«Dois seres amam-se, unindo-se na diferença e não fundindo-se na in-diferença» Será preciso dizer mais? O que corre por aí, sob a designação de amor, não passa de torpe fusão na in-diferença, em que o outro não conta, em que o outro se torna no instrumento invisível, no depositário de uma semente inútil, tornada imediatamente estéril, porque não a fecunda nenhum desejo de criação.
Explicarei agora o que significa «enteléquia», nem toda a gente lê Aristóteles, e muitos do nosso tempo, se o pudessem conhecer hoje, administrar-lhe-iam uma cicuta moderna, talvez cibernética, e tapar-lhe-iam definitivamente a boca.
Do grego, «entelekheia», significa “essência da alma”: estado do ser “em acto”, plenamente realizado, por oposição ao modo de ser “em potência”, ou seja – o ser é movimento contínuo, a partir da potência (o que pode ser e já é, enquanto possibilidade), até ao acto (o que é, na exterioridade efectiva, após realizada a potência) e nessa sucessão de potências e actos, em que se vai subindo, numa ascese intelectual ou espiritual ou, porque não, total, à escala do todo que somos, enquanto entidades, o ser acrescenta-se, agiganta-se até atingir a perfeição – único objectivo a perseguir digno dos humanos que somos. A perfeição: eis a «enteléquia», esse auge do ser em acto, parecido com o deus aristotélico, que, por ser acto puro, escapa ao estado de potência! E então o amor, sendo «enteléquia», tem que produzir esse fenómeno, tem que gerar a perfeição ainda que não consiga realizá-la logo, em pleno, e tenha que aceder a vários estados de dialéctica potência-acto, enquanto não lograr atingir o cume para que tende. O êxtase do amor é apenas esse, e tudo o resto que miseravelmente se conota com prazer e delírio eróticos, vivido ou observado, não passa de simulacro, em que cada um dos intervenientes se liberta, do abraço com que se soldou ao outro,alheado, na tal in-diferença e se dispõe a dormir ou a fumar um cigarro, saciado até à próxima! E é por isso, caros amigos , já que o amor não realiza a «enteléquia», que os amantes se saturam um do outro, pois apenas conhecem um número limitado de gestos que reproduzem automaticamente, passando à frente, feita a descarga biológica – como quem bebe água e sacia a sede, perdendo a água, a partir daí, todo o interesse, até ao próximo surto de secura!