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POESIA NO TEJO

Há 20 anos que vivo do mar.  No sentido profissional, quero dizer, que do mar vivo e viverei sempre. Saída da universidade, depois dum “toca e foge” com a banca, caí de paraquedas ou melhor, mergulhei de escafandro, para ser mais fiel à terminologia náutica, no sector marítimo.

Duas décadas volvidas, continuo tão entusiasmada e curiosa como antes. O que me seduziu no inicio, que era o facto de tudo ser uma novidade, mantêm-se. Todos os dias se aprende alguma coisa. Longe vão os primeiros dias, em que, tendo sido recebida por gente formada pela Escola Náutica, fui carinhosamente vítima da rigidez de linguagem. E de gozo, claro. Carinhosamente, eu sei, que ainda hoje nos rimos disso.

Nesses idos tempos de 1999, o uso do telex era já raro, mas ainda existia. Fazia parte das minhas funções nesses primeiros dias recolher a mensagem e levá-la ao responsável.  O telex referia algo como: Eta Lisboa 13.05 14:00. Em pânico, com as mãos a tremer, entrego-lhe o papel. A minha noção de Eta vinha de Espanha, e devo ter feito um ar tão assustado, que ele prontamente, entre risos, me disse: não é nada do que estás a pensar. Como não? Eta?! Eta, explicou-me ele, é tão só a data esperada do navio em porto: “Estimated Time of Arrival”. O navio era assim esperado em Lisboa no dia 13 pelas 14:00. Quando o mundo marítimo deixou de ser assustador, passou a ser entusiasmante.

Nesse mesmo dia fui proibida de usar a palavra “barco”, que é sinónimo de desprestigioso tratamento. Navio, diziam-me, se tiver dimensão para tal. Na dúvida, embarcação e ninguém leva a mal. E não há cordas a bordo, ou melhor, há 3: a corda do sino, a corda do cronómetro, e acorda que já é tarde (o folguedo é integrante das praticas marítimas…) Tudo o resto são cabos.

“É bom que uses as expressões correctas, ou acharão que és maçarica”.  Que era o que eu era, de facto, maçarica. Ainda hoje, maçarica em progresso.

Mas o mar não passou a ser sinónimo de trabalho. Ou não só. Não é que eu não repare nos navios atracados, ou nos contentores que encontro por aí quando estou de folga, que esse ímpeto se mantem inalterado, mas a poesia do mar não me foi retirada pelas agruras da vida profissional. Não, continuo a saborear o mar como antes. Vibro com as paisagens marítimas, fluviais. Adoro banhar-me nas ondas. Admiro a costa escarpada. E claro, a navegação de recreio.

Incrivelmente, e nisto às vezes pecamos muito, já naveguei em Amesterdão, em Londres, em Aveiro, Porto e outras povoações menores, mas nunca em Lisboa, minha cidade natal e de trabalho. O que é mesmo grave, considerando que da janela do edifício onde trabalho tenho uma vista panorâmica sobre a marina da Doca do Espanhol (Alcântara), local de onde, diariamente, saem embarcações para velejar no Tejo.

Resolvi-me por fim a fazê-lo. À hora marcada, na Gate 1, encontraram-se pessoas unidas no mesmo desejo de velejar: um casal de inglesa e francês, uma família algarvia, uma americana e seu amigo português, e eu, em passeio com o meu marido. O Skipper era um excelente hospedeiro, e o à vontade gerou-se entre as pessoas, em conversas paralelas, umas vezes em inglês, outras em português, no desembaraço que nos é próprio.

Zarpámos num fim de tarde soalheiro com excelentes condições de tempo e de rio.

A ponte pedestre rotativa que marca a saída da marina encontrava-se aberta, alinhando com a margem esquerda. Nos dias de semana, a ponte esta efectivamente perpendicular ao rio, permitindo que pedestres circulem entre a 24 de julho e a língua de terra próxima. Sempre que uma embarcação precisa sair ou entrar na marina, a ponte roda sobre o eixo da margem, permitindo a circulação. Aos fins de semana, sendo maior o tráfego, e para evitar manobras frequentes da ponte, a marina está aberta ao rio. A viagem foi muito agradável: a paisagem diferenciada das duas margens, o calor morno do sol na pele, a brisa refrescante, a emoção de velejar, o equilibrado adornar dos corpos, o fascínio pelo içar e arrear das velas. Mas também o alternar entre o motor e a correção do tamanho da vela, o leme, a lembrar filmes antigos, o brindar à vida, as conversas tidas, a contemplação, aquele espantoso sentido de renascimento da alma que só o mar permite, tudo contribuiu para um excelente entardecer. Saímos da embarcação com um expresso desejo de repetição em breve. É o bichinho do mar, entranha-se.

Ficámos a conversar com o Skipper. Contava ele que a composição do grupo era incrivelmente incomum face aos seus clientes habituais. Não me espantaria o facto de revelar que haveria poucos portugueses, mas o que me surpreendeu foi a confidência de que cerca de 90% são americanos.

O próprio nome da embarcação (viram, embarcação, não barco???) espelha isso mesmo: “Amazing”, assim se chama a embarcação de 12 metros. Nome mais do que justo, afinal.

O que revela que não somos só nós, portugueses em geral, e lisboetas em particular, a desconhecer aquilo que afinal está tão próximo. Parece óbvio que os turistas de outras origens – espanhóis, ingleses, alemães, franceses – também não terão acesso à publicitação destes eventos.

Acredito que este facto se prenda com uma divulgação restritiva em canais de turismo mais dados ao público americano, e obviamente uma clara falta de iniciativa na partilha deste tipo de ocorrências nos canais mais generalistas. Considero que nem chega a ser a questão do valor, afinal dá-se € 70 por um bilhete num festival de verão, quando a viagem para 2 ficou por esse valor, por exemplo. Não é como ir ao cinema, não se faz todos os dias, mas parece-me quase indispensável que se faça, uma vez na vida, que seja. Voltarei ao mar em mais um dia de poesia. Isso é garantido. É uma promessa.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, 
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia 
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. (…)”

Alberto Caeiro

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