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O VELHO SENTADO À SOMBRA

Desde de novo que imagino o avô como o culminar idílico de uma vida. Na perspetiva de criança da aldeia que fui.

O pai do pai sentado na pedra granítica encostada à parede da casa velha; a mãe da mãe entretida na lide doméstica ou a tricotar, como quem junta todos os minutos numa espécie de novelo, para que o tempo renda, e com o terço na mão, as preces silenciosas devem andar à volta da encomenda de uma morte santa, sem sofrimento, quando Deus assim quiser.

Gosto dos velhos da aldeia. Não que pelos outros tenha menos apreço. É que a inocência dos avós rústicos da vida, aqueles que comungaram da natureza e desta obtiveram o sustento, que beberam da água pura e fresca das bicas e dos regatos, que levaram as sementes à terra, e que na espreita das primaveras plantaram árvores e as viram crescer até embarrarem nos céus de todos os dias, aqueles que hoje se sentam à sombra das videiras morangueiras, são autênticos monumentos humanos.

Tal como outros monumentos que a história sustenta, a maior parte envelhecidos, atirados para o abandono, estes avós com pele sulcada pelas rugas, estão com os olhos parados no horizonte, esperando. Não sabem o que esperam e rezam. Oram em silêncio, ou mexem-se-lhes os lábios como se assim o Criador possa ver que estão intencionados. Porque Deus pode não ouvir as preces. Deus há de ter tantos pedidos, que é preciso ir insistindo.

Os velhos da cidade deambulam pelas ruas, pelos jardins, pelas praças, jogam à sueca, lêem os jornais, martirizam-se com as notícias, com a política ignóbil, enervam-se, chamam nomes aos políticos e vibram com o futebol. Chateiam-se demasiado. Mas podem ir aos hospitais, estão sempre nos médicos e estes descobrem-lhes doenças, tratam-nas com medicamentos e operações. Vivem no meio de muita gente, que circula como formigas, mas estão abraçados pela solidão atroz. A solidão de quem não sabe pedir para morrer. A solidão de quem vive mergulhado nas preocupações de uma sociedade fervente e infeliz.

Os velhos da aldeia não lêem jornais. Esperam a visita dos filhos, dos netos, dos bisnetos e nessa espera prolongam a vida. Sem hospitais, sem reboliço das gentes, sem poderem ir ao médico descobrir doenças. Deitam-se ao crepúsculo, não sabem se acordam pela manhã, mas cedo, bem cedo, cedendo às artroses, às dores dos ossos velhos e cansados, lavam a cara com a água fresca dos poços ou das minas e bebem a natureza. Amam os animais, falam com eles, cuidam-nos e dão-lhes uma alma. A sua própria alma e todos comungando dela, não há solidão, ali sentados à sombra da ramada que começa a florir e isso é o suficiente para a vida.

Se lhes morar no peito alguma solidão, é pela ausência dos seus filhos. A cidade os roubou. 

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