Cultura, Literatura e Filosofia

OS NOSSOS HAL 9000

São casos clínicos, muitos deles, os dos aventureiros que ousam, num ímpeto, desligar o seu parasita de uma vida: esse sem rosto que toma a rédea das datas, dos trajectos quotidianos, das próprias decisões que envolvem amores, profissões, devoções e as palavras confinadas aos “sim” e aos “não”. Difíceis para um diagnóstico que não entre em contradição consigo mesmo, porque o parasita pensa em tudo, até no significado dos sentimentos, nas consequências dessas experiências sobrenaturais, mas não tem um plano perfeito, que contenha e corrija a exactidão, para que as sanções aos infractores dos destinos sejam eficazes. E assim o chapéu do determinismo tem abas largas, a luz da realidade queima, os sãos sê-lo-ão sempre que respeitem a sombra das convenções, ou denotem arrependimento na barra das suas confissões, impolutos, honestos, respeitadores, comedidos na expressão das suas angústias, entregando a revolta nos espaços previstos pelas leis. Amanhã vou acordar cerca das seis horas, tomo um lauto pequeno-almoço cerca das cinco e trinta, saio de casa às cinco horas e regresso às sete para ver se o carteiro, que chega sempre pelas dez horas, fez como eu e navegou no sonho. É óbvio que ele não é um caso clínico, usa de compostura, não falha um cacifo, apesar de ter umas quantas prestações à banca em atraso. Nas horas vagas lê surrealistas, nas outras ouve, com ajuda do auricular que usa de porta em porta, música barroca, e tem um bloco de apontamentos onde desenha os retratos dos amigos que, se são bonitos de feições, converte em caricaturas e, se lhes acha defeitos, aprimora para os consolar. Noutro dia, convidei-o para um café no final da ronda e ambos concordámos que não se devem catar parasitas. Para esses há um remédio santo: irmos falando de assuntos ligeiros, como esse de que temos todos os mesmos direitos ou de que, no fundo, lá no fundo onde ninguém chega, todas as criaturas humanas são boas. Entretanto, por aqui vai-se ligando, e desligando, conforme as conveniências. Não vale a pena fazer inimigos.

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