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Cidadania e Sociedade

SER PROFESSOR : ASPECTOS DE UMA LUTA NECESSÁRIA

Os professores estão em luta. Querem ver a carreira “descongelada” e auferir, de uma vez por todas,  da remuneração a que o tempo de serviço lhes dá legalmente direito. Eu também, como é evidente, fui/sou prejudicada pelas políticas de austeridade dos governos anteriores e apoio  toda e qualquer acção que vise a reposição da lei.
No entanto, reflectindo mais a fundo acerca do ensino em Portugal, creio que a luta precisa, urgentemente,  de incidir também sobre outros aspectos.
Convido os leitores a tomarem conhecimento do documento que estabelece o  Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, homologado pelo Despacho  n.º 6478/2017, 26 de Julho, do Ministério da Educação. Convido – os, na exacta medida em que, se não conhecerem as perspectivas ordenadoras que devem presidir ao ensino em Portugal, na actualidade, nada podem perceber acerca da função dos professores, da importância da escola, da intervenção dos pais e encarregados de educação e da sociedade como um todo. E, não tendo conhecimento ou não compreendendo as múltiplas realidades que influem no referido perfil, formando-o, não tendo conhecimento ou não compreendendo a função de cada um no processo que conduz a semelhante perfil (e portanto a sua, de cidadão interveniente), não tendo conhecimento ou não compreendendo o nível de mudança que a obtenção desse perfil comporta, nada poderão opinar acerca da luta dos professores.
Sendo deles, especificamente,  porque são os actores determinantes do processo, a luta deveria ser de todos e de cada um – porque todos,  em momentos mais ou menos recentes, mais ou menos alargados da sua existência, precisam(ram) dos professores. Pouco importa o grau de escolaridade que tenham obtido,  pouco importa, pois, que sejam doutores, engenheiros,  médicos, cabeleireiros,  empregados de mesa, funcionários públicos,  empregadas domésticas (…) ou que tenham sido alunos brilhantes, suficientes ou medíocres, ou ainda que se recordem da escola porque um certo professor os marcou positivamente  (ou negativamente ): a verdade é que foram à escola porque esse acto faz parte integrante da vivência social do homem.
Mesmo depois de terem concluído os estudos e iniciarem uma carreira profissional, continuam a necessitar de mestres, pois outros mais experientes servirão de modelo e guia –  pelo que o conceito de professor conhece variantes. Cada um de nós,  nesta ou naquela fase da vida é chamado a ensinar e a aprender, numa dinâmica constante que, numa sociedade normal,  durará todo o tempo útil de cada pessoa.
É por estas razões fundamentais que o professor e a sua função deveriam ser considerados o pilar de qualquer sociedade e reconhecidos como tal.
Partindo desta premissa, e na exacta medida em que a importância de uma profissão, no contexto social de hoje, ainda é medida pela remuneração, e são os mais bem pagos aqueles que granjeiam mais respeito, o salário de um professor deveria ser muito mais elevado do que,  efectivamente,  é.
Contudo não creio que seja somente  o factor económico o sinal prioritário do respeito e da importância do indivíduo na sociedade; não é por isso apenas que concluo, por experiência própria, que a nossa remuneração é demasiado baixa.
Um professor trabalha, leccionando, um número variável de horas por dia, na escola. Mas as suas actividades profissionais não se esgotam aí,  de modo nenhum. Ele traz consigo um acervo de tarefas inevitáveis taus como,  planear as aulas do dia seguinte, preparar materiais, elaborar testes e fichas que também deverá corrigir, tratar este ou aquele assunto que o obrigam a redigir relatórios, etc. Logo, a função do professor não deve ser comparada à de outros funcionários que, chegada a hora do fim do expediente, podem respirar fundo e nunca mais pensar no seu serviço até ao dia seguinte. E então,  se bem que o horário de um professor seja de 35 horas semanais, as tarefas que a profissão exige, quer na escola, em reuniões ou actividades extra – curriculares, quer em casa e pela noite dentro, retirando horas ao lazer necessário,  ao descanso,  à convivência familiar, extravasam muito para além. Ser remunerado, justamente, por todo esse trabalho decorrente do bom cumprimento das suas funções seria uma reivindicação a levar a cabo.
Por outro lado, esse funcionário público chamado professor não tem, como muitos, uma repartição onde ocupa uma secretária ou um gabinete, manuseando papéis ou digitando textos, não está a um balcão atendendo o público, com o dever de resolver o problema de uma pessoa de cada vez. Não.  O professor enfrenta, várias horas por dia, turmas de 30 alunos  (ao mesmo tempo, reunidos numa sala) e deve criar as condições necessárias para que esses 30 alunos aprendam o que deve ensinar-lhes. Pouco importa que tenha dormido pouco, que esteja cansado, que nesse dia concreto não lhe apeteça falar: ele tem que respirar fundo, entrar na sala de aula com um sorriso, enfrentar grupos ruidosos e estabelecer a ordem para poder leccionar. E deve fazê – lo durante 90 minutos, mais 90 minutos,  mais 90 minutos até concluir a jornada diária, com intervalos mínimos de 10 minutos e uma hora para almoçar.
Muitas  vezes, esse professor não reside na área da sua escola (contra a sua vontade); é obrigado, pois,  a deslocar – se em trajectos para os quais nem sempre há transportes públicos compatíveis, precisa, por isso, de ter um carro e gastar quantias de dimensões variáveis sendo que o tempo que ocupa nessas viagens, de ida e volta, diminuem ainda mais o necessário descanso. Ou então,  tem que abandonar casa e família e mudar – se para outro local, alugar um sítio de residência, adaptar – se a nova envolvência social, sabendo que, no ano seguinte, irá…sabe-se lá para onde.
Desenganem – se os que pensam que o professor tem subsídios de deslocação ou de alojamento: esteja a cinco minutos de casa ou a 300 quilómetros, o único benefício que consta do recibo de vencimento é o de refeição, a saber 4,77 euros, por dia, 22 dias por mês.
Quanto ao vencimento propriamente dito depende dos escalões; porém, como a maioria dos professores está nos mais baixos, posso garantir que não chegará, em média,  aos 1500 euros, estando efectivamente abaixo em inúmeros casos.
Poderão objectar – me que, comparado com o ordenado mínimo,  1500 euros é bastante bom;  e eu respondo que considero o ordenado mínimo absolutamente escandaloso, na sua insuficiência, pelo que não posso aceitar essa comparação.
Não tendo uma excelente remuneração que compense, parcialmente, o enorme desgaste de uma profissão muito difícil, não resta, sequer,  aos professores o prazer de usufruir  das comodidades de uma excelente casa ou de um carro de gama superior ou ainda de férias em locais remotos e aprazíveis.  Não.  Os professores devem contentar – se com apartamentos e carros modestos comprados a prestações e, nas férias,  ou ficam em casa ou fazem uma escapadinha a um local que, de preferência,  esteja em promoção .
Superando a questão remuneratória, sem contudo lhe retirar o alcance, percebe – se que a sociedade actual não tem grande consideração pelos professores.
Começarei este item da minha análise, referindo – me aos alunos que, efectivamente e na sua maioria, não respeitam o indivíduo que, diariamente,  dá o melhor de si para ensiná -los. Não o respeitam porque, escassamente, lhe escutam as palavras e o ensinamento. Não o respeitam porque cedem à indisciplina.  Não o respeitam porque, muitas vezes, nem o conhecem pelo nome e usam a palavra “você ” para se dirigirem a ele. Não o respeitam porque o enganam, copiando nos testes, ou zombam dele pelas costas. Não o respeitam porque o acotovelam e empurram pelos corredores ou escadas.
Os encarregados de educação procedem de modo semelhante. Não incutem nos educandos,  como deviam,  o respeito e a estima pelo professor.  Ameaçam – no e hostilizam – no se acaso ele precisa de ser severo ou simplesmente justo para com o seu educando, que é,  quase sempre, filho. Chegam ao ponto de agredi – lo.
As diversas organizações sociais não levam os professores em grande conta, esquecendo que precisam deles e deveriam acarinhá – los, protegê -los e honrá-los. Tiram o chapéu ao advogado, ao médico,  ao engenheiro,  ao político e desdenham do professor – mesmo sabendo que o advogado, o médico,  o engenheiro, o político precisaram de muitos professores para chegarem a ser advogados,  médicos,  engenheiros, políticos.
Por isso, os professores lutam e fazem-no usando os instrumentos legais de protesto.
Quanto a mim, deveriam lutar, ao mesmo tempo, pela mudança do paradigma instituído no sistema de ensino português . Percebendo o enorme desfasamento entre o mundo, sempre em mudança,  fora da escola e a rigidez da sala de aula, já seria o tempo de perceberem que nenhuma sala de aula do mundo, por mais luxuosa que seja, por mais material tecnológico de que disponha, pode conter e satisfazer as necessidades comuns ao professor e ao aluno. Ambos precisam de espaços naturais e livres onde possam actuar, deixando para trás as teorias dos manuais, a rigidez dos programas pré – estabelecidos, o bafio das secretárias e do quadro (agora branco). É necessário que se vá para a escola com prazer: o aluno porque sabe que será chamado a construir o mundo, o professor porque sabe que é um guia, mas, simultaneamente,  um construtor como os seus discípulos e com eles.
As escolas, esses edifícios pesados e compactos,  umas já renovadas, outras em degradação insultuosa, não fazem sentido nenhum. São necessários espaços amplos e luminosos, de preferência ao ar livre, onde o corpo se sinta bem e a mente desperta para a acção. É urgente que o aluno use a sua capacidade para descobrir a matéria de que necessita para ser um sujeito completo no mundo actual e que nessa descoberta use o entusiasmo e a paixão que estão nele e que desbarata fora da escola em acções que o diminuem. Mas o professor precisa de ser capaz de fazer o mesmo, inventando – se a si próprio no desafio que será contribuir para a formação dos homens e mulheres deste tempo.
É urgente pôr fim aos testes, estereotipados e inúteis,  porque se destinam a quantificar competências, que nunca serão adquiridas, pois o aluno descarta tudo o que utilizou para realizar o teste. É urgente acabar com classificações quantitativas, com médias e exames que não aferem verdadeiramente as capacidades que importa, acima de tudo,  trazer à luz, para depois trabalhar com elas.
90 minutos fechados em salas de aula, devendo estar atentos a matérias pouco ou nada ligadas ao verdadeiro interesse da vida,  que, entretanto, vai correndo,  lá fora?  Quem o consegue? Quem o fará sem suspirar dezenas de vezes pelo momento libertador?
Eu entendo na perfeição o aluno que boceja, que consulta o relógio para saber quanto tempo mais precisa de aguentar essa tortura, entendo – o quando devaneia ou procura uma distracção que muitas vezes lhe cabe no bolso,  entendo a rapidez com que larga tudo e corre para a porta, sabendo que tem 10 minutos para descontrair, posto o que precisará de regressar ao suplício.
Sei que, mal sai da sala de aula e corre a espreguiçar – se ou a interagir com os amigos,  o aluno já não leva a menor recordação do que, supostamente, deveria ter aprendido antes. Se lhe perguntarem: ” Que aula tiveste? O que aprendeste?”  , certamente ele não saberá dizer, ou apenas lhe ocorrerão fragmentos. E, contrariamente ao que possa acreditar – se, esse aluno que foge a correr da sala, esquecido de tudo o que ouviu, está dentro da razão e não o professor que se lamenta e se queixa de desatenção.  Ele próprio deveria saber que aquilo que fez durante 90 minutos, gastando energias mentais e físicas,  não tem qualquer valor, não possui a vitalidade necessária, não perdurará,  portanto.
Logo, o professor deveria juntar aos seus protestos, à sua luta, mais algumas exigências para além da justa reivindicação que faz agora. Deveria propor que fosse revisto todo o sistema de ensino e, no limite, inteiramente revogado; deveria reclamar um tempo alargado de formação plena na qual pudesse aprender a tornar-se o professor destes novos tempos; deveria querer negar tudo o que ele próprio aprendeu em escolas quase iguais àquelas em que agora ensina, e pedir um ano sabático para reaprender  (-se). Deveria ter vontade de sair do ensino, se acaso reconhecesse em si falta de capacidade ou de estímulo para novos desafios, e lutar para que a reforma pudesse chegar mais cedo, dando lugar a mentes mais jovens.
Parecendo utópica e logo impossível de levar à prática esta necessidade de fazer uma moratória durante a qual o sistema de ensino seria suspenso e examinado pormenorizadamente,  não só para deixar de ser um sistema mas para se abrir às necessidades do mundo actual, sempre em vertiginosa mudança,  ela é,  de facto, a única solução. É urgente perceber que apenas uma ruptura total, uma mudança radical de paradigma serve o nosso tempo: não adianta dar pequenos passos aqui e ali, remendando aquilo que, de tão roto e velho, não aguentará novas texturas. Tem de haver a coragem de enfrentar o enorme vazio que grassa há demasiado tempo nas escolas, eliminá – lo e preencher a folha em branco com o material adequado; tem de haver a coragem de nos olharmos lucidamente e admitirmos a nossa total incompetência; precisamos de entender, de facto, este mundo para onde caminham os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos e anteciparmo-nos à catástrofe, anunciada em múltiplos sinais, erradicando – a, antes que se instale. Nós somos deste tempo, todos nós – os mais velhos, os de meia idade,  os jovens e as crianças – e é uma imensa cobardia ausentarmo – nos do problema, dizendo que o futuro já não nos pertence e que não veremos o novo homem. Precisamos de ser capazes de antecipar, vendo mais para além desta cortina temporal que estenderam à nossa frente e projectarmo – nos até ao mundo dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos. Foi assim que evoluímos,  enquanto humanidade: sempre existiram profetas, tidos como insanos, mas obreiros de um futuro que teve necessidade de aceitá -los,  mais à frente. Porque havemos de quedar-nos agora, aturdidos com a vertigem de um tempo turbulento e móvel como nenhum outro, prevendo a derrocada, sabendo – a inevitável mas correndo a refugiar – nos num qualquer solipsismo que nos liberta da responsabilidade?
Começar de novo exige audácia e compromisso. Nem todos os professores serão capazes de tais atitudes, nem todos quererão abrir mão de um sistema a que se acomodaram, nem todos terão coragem ou poder auto-crítico para, deste modo, admitirem que é necessário dar o salto. No vazio, sim, que seja. E então, esses que agarram o passado com unhas e dentes devem sair, de moto próprio ou por decreto – que o momento não se compadece destes espíritos pusilânimes.
Como ficou descrito nesta crónica já longa e, ainda assim demasiado curta, o professor é,  de facto, o pilar fundamental da sociedade; qualquer professor, desde o ensino básico ao superior. Ele próprio parece não ter disso inteira percepção. Por isso, torna-se professor um pouco ao acaso e depois não realiza em si as necessárias adaptações e transformações. Torna-se professor por exclusão de ofícios, faltando – lhe a vocação ou a voz indispensáveis para poder sê – lo, de facto. Torna-se professor sem a devida competência  e vai somando anos não chegando a reconhecer as suas lacunas e não havendo, à  sua volta, ninguém com coragem ou firmeza para lho mostrar. Por causa de tudo isto, também,  a classe dos professores é desvalorizada por quem observa: muitos não cumprem, efectivamente,  o seu papel como deviam, mesmo que não faltem às aulas um único dia, outros não se apresentam,  em público,  com a dignidade exterior e o vocabulário adequados aos construtores do mundo. Muito embora possa parecer secundário, visto tratar-se de aparência, também o invólucro social se reveste da máxima importância, já que é esse o primeiro sinal que qualquer um dá de si ao mundo. E há professores que não compreendem a necessidade de se revestirem de dignidade no traje, na postura,  na voz e nas palavras. Quem os observa – a começar pelos alunos,  esses grandes críticos, que mesmo sendo pouco aplicados ou tirando más notas sabem reconhecer a excelência no professor, ou a falta dela, e alargando – se à sociedade inteira que, não raro julga o todo pela parte – tem razões para descrer da classe.
Alguém me disse,  em tempos, reflectindo sobre a escola onde exercia funções e tendo profundo conhecimento do corpo docente de que era parte: “Se um certo número de professores,  muito concretos e por razões específicas,  fosse despedido, dando lugar a outros,  esta escola ficaria óptima! “. Compreendi – o, na íntegra, se bem que, a outro nível, a perspectiva do despedimento contenha, em si, uma carga pejorativa. Mas na conjuntura que atravessamos,  em Portugal e no mundo,  é absolutamente necessário que se faça uma triagem, que se erradiquem das escolas os fardos inúteis ou prejudiciais ao bom êxito da tarefa fundamental a que um profissional do ensino é chamado. Sem contemplações,  há que observar muito bem esses candidatos a professores e colocá – los   nas funções  para que são talhados, seja dentro ou fora da escola: não é suficiente querer ser professor,  é necessário ser capaz de responder aos desafios da profissão com a devida eficácia. Em qualquer caso, é absolutamente essencial formação contínua e contínua prestação de provas – porque contínua também e muito veloz é a mudança deste nosso tempo.
E então,  a luta dos professores,  esta, pela qual fazem greve, reivindicando o “descongelamento ” da carreira, é legal e justa; mas é necessário que pensemos a sério se não haverá outras batalhas a travar, igualmente pertinentes.

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