Quando os temas são demais e as palavras sempre as mesmas para dizê -los, uma certa inquietação percorre a mente criativa. O caos instala -se e a tentativa de dar uma ordem às ideias adquire um poder bloqueante. Imersa e dispersa em círculos, a imaginação voga, turbilhonando, à espera que uma súbita clareza reponha o fluxo organizado do pensamento.
Tenho pensado, ultimamente, nos problemas quânticos e na ordem aleatória que os rege, uma ordem que não somos capazes de perscrutar conscientemente, pois reside em turbilhões dispersos, aparentemente presos em torvelinhos onde giram em torno de si próprios. Tenho pensado que, a esse nível, tudo está unido e tudo pertence a todos : a terra, o mar, as selvas, os desertos, todos os seres existentes e os objectos criados pelo homem, reduzidos ou expandidos que sejam à sua essência, constituem o todo- e qualquer divisão é absurda.
Ao nível cósmico não há propriedade individual, não há, sequer, individualidade: o verdadeiro é o Todo e tudo está em tudo – tanto quanto aquilo a que chamamos partes.
Vivemos um mundo social de propriedade, rotulamos os objectos e damos -lhes um valor, que traduzimos em moeda. Qualquer um que ignore esta lei de mercadoria e decida apropriar – se seja do que for sem pedir autorização, sem pagar, torna-se réu de um crime, quando descoberto. E contudo, na incomensurabilidade do todo de que faz parte, ele e o objecto que levou consigo, ambos são uma coisa só : pelo que não existe aí apropriação indevida ou crime.
Aliás, o conceito de crime foi inventado pelo homem ao estabelecer limites rígidos de actuação dentro de um sistema determinado, no contexto do qual, aquele que se furta ao padrão é punido. A propriedade, ou seja, o modo como dizemos de alguma coisa, Isto é meu! e Se o quiseres obter, deves pagar! sempre me surgiu como prática aberrante dos homens, trocando trabalho por dinheiro e alienando assim as suas faculdades criativas ou de produção. Um mundo onde tudo pudesse ser, livremente, de todos, sem o azorrague da posse e a humilhação da carência, tornar-se – ia o verdadeiro mundo restituído à sua origem.
Mas só um predestinado ou um ser absolutamente excepcional terá poder para entender esta lei impressa no cosmos e pugnar para a libertação do mundo de sucessivos e irresolúveis fracassos. E esse predestinado, se acaso divulgasse o seu segredo e, mais ainda, se tentasse levá -lo à prática, cedo seria silenciado nas suas palavras e manietado nos seus actos.
Já houve notícia, em tempos remotos, de homens dotados desta superior clarividência, homens cuja palavra soou mágica e redentora a ponto de criar adeptos. Que foi feito deles e das suas mensagens e ainda dos discípulos que, talvez sem o compreenderem por completo, quiseram seguir a utopia? A história, se nem sempre os ignorou ou esqueceu, também não lhes pôde firmar o mérito: porque a história é a palavra de ontem trazida para hoje como eco e sinal . Mesmo que se vá repetindo, com novas roupagens, não é suficiente para dar daquilo que narra efectivo testemunho.
Há dois níveis de compreensão do universo. Esta, comezinha e fútil, infeliz e beligerante de um mundo fragmentado em criaturas, todas imbuídas do poder absoluto do seu pequeníssimo círculo e a outra, vasta, incomensurável e plena – onde tudo faz sentido.
Não há dúvida que a humanidade encontrou o seu habitáculo ao nível mais baixo e, atendendo aos heróis que vai erguendo, nele deseja persistir e quedar-se. Porém, o desequilíbrio patenteia – se e estamos a um passo de perder o rumo: há que sondar o que se agiganta para lá da superfície e abrir os olhos e a mente à vastidão.