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A VERDADEIRA VIOLÊNCIA ESCOLAR

 O texto que será a minha crónica desta semana foi escrito há dez anos.  Mas dada a sua pungente actualidade continua a reproduzir, em linhas gerais, o problema dos professores e da sua função social tão incompreendida.  Por isso decidi revisitá – lo e dar, com ele, testemunho.
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 Sou professora, aí está! Não queria ser, nunca quis – excepto quando era criança e gostaria de ser como a minha mãe – mas, o facto de ter escolhido a filosofia como ocasião de licenciatura e ter detestado outra profissão que cheguei a  exercer e em nada me convinha, conduziram-me a esta carreira. Contrariamente às minhas expectativas iniciais, acabei transformada numa profissional digna e até me tornei referência para muitos alunos (e nada mais direi a este propósito, porque não é significativo) e agora, quando por toda a parte se discorre e se alvitra (invariavelmente mal) sobre o ensino, os professores e tudo o mais que daqui decorre, dou comigo a reflectir, de modo algo diverso do que fazia dantes, sobre aquilo que de facto sou.
Contrariando o que possa imaginar-se, uma vez que sou professora de filosofia, o meu trabalho não é, acima de tudo, intelectual, mas físico, braçal, manual e o que quiserem acrescentar para definir tarefas que envolvem os músculos, o corpo. Desde que chego à aula e até que saio, não me sento nunca, não paro, não me calo e assim tem que ser, sob pena de não conseguir a atenção dos meus alunos. Pareço um espantalho, uma artista de circo, uma actriz, um bobo no feminino, uma lutadora de boxe cujo alvo é o ar em torno de mim. E não imaginem que toda esta agitação está relacionada, apenas, com o vigor a que a filosofia obriga quando tem que ser transmitida a adolescentes de 15 anos; não! A verdade é que tenho que mandar calar, zelar para que os alunos não se divirtam uns com os outros e com os seus típicos brinquedos tecnológicos, fazer tudo o que está ao meu alcance para que cada período de 90 minutos de aula seja de um dinamismo tal, que não haja o mínimo ensejo para o tédio ou para a dispersão. Isto ocorre de 3ª a 6ª – deram-me a 2ª feira livre, mas fui castigada com uma 3ª e uma 6ª absolutamente surrealistas – e o meu trabalho, físico como disse, é tão extraordinário que chego a casa de rastos! E eu, que até costumava praticar desporto, frequentando o ginásio, não o faço há meses, pois quando acabam as aulas já não tenho forças para mais nenhuma actividade corporal. Além disso, sou obrigada a viajar de carro – faço 50Kms todos os dias – e, como tenho deveres domésticos, ainda assumo (muito mal, confesso!) a lide da casa, ou seja: tenho que dar um jeito aos quartos e fazer o jantar, pois o meu salário não me permite jantar fora ou ter uma empregada a tempo inteiro, pelo que me satisfaço com uma mulher-a-dias, duas vezes por semana.
Passo na escola 23 horas por semana ( sendo que às 3as e 6as vou para lá de manhã e chego a casa à noite), nem sempre a dar aulas, mas a realizar pseudo-tarefas que em nada me valorizam ou a quem quer que seja. Quando venho para casa, ainda preciso de pensar nas aulas do dia seguinte, preparar materiais, elaborar e corrigir testes. E, como sou escritora e filósofa, não posso deixar  de escrever diariamente e de fazer as minhas reflexões, e assim justificar estes epítetos que a mim mesma atribuo.
 O meu dia tem 24 horas e tenho de dormir algumas, assim como de comer e, eventualmente, de ter vida familiar e social ou, porque não? de reclinar-me no sofá e não fazer nada, ler livros e revistas, ir ao cinema…enfim, tudo isso que faz a gente normal.
Também tenho uma filha adolescente e trato dela sozinha, praticamente desde que nasceu, pelo que preciso de dar-lhe a assistência normal que é uso os pais e as mães darem aos filhos.
 Observem então tudo isto, contabilizem tudo muito bem contabilizado e digam-me se consideram possível alguém viver desta maneira e ainda ter algum discernimento, ou seja ainda ser capaz de acordar todos os dias com alegria de viver, pois sabe que a sua jornada vai ser um êxito!
Comecei a reflectir sobre tudo isto pois, em certos dias – e já falei duas vezes nas 3as e nas 6as – estou tão cansada por volta das sete da tarde (ou da noite, conforme a estação do ano!) que o menor gesto é um esforço gigantesco. E foi assim que decidi analisar bem analisado o meu dia a dia, para tentar perceber se sou eu que sou débil ou se será a tarefa que é monstruosa. Acabei por aderir à segunda hipótese, ao mesmo tempo que me dava conta de que não sou apenas eu que assim ultrapasso toda a capacidade humana de trabalho, mas esta classe a que pertenço e uma estrutura hierárquica que nos exige que trabalhemos duramente durante horas e o continuemos a fazer mesmo quando nos deveria ser permitido descansar, retirando-nos toda e qualquer hipótese de vida social, familiar ou doméstica normal.
Fala-se na violência escolar, não fala? Pois fala; mas o que dizem por aí não é a verdadeira violência escolar… essa, surge, bem sei que surge, mas é pontual e circunscrita a certos meios, a certas turmas e a certos contextos…A verdadeira violência escolar é esta: ir todos os dias para uma escola sem condições, em geral, a cair de velha (na minha, chove, mesmo em cima da secretária, por exemplo, as persianas estão estragadas, as mesas e cadeiras pejadas de grafitttis e por aí adiante), andar aos encontrões aos colegas numa sala de professores demasiado pequena e atravancada, não ter um sítio tranquilo para trabalhar nas horas em que nos obrigam a permanecer ali,  dar aulas de substituição apenas para cumprir horário e manter os alunos fechados na sala e, por fim, enfrentar jovens que não sabem como entrar na sala de aula, que postura assumir ( por muito que eu lho ensine, não aprendem!) e que não estão nem um pouco interessados no conhecimento que lhes transmito. Foram eles que mo disseram, há dias, quando lhes perguntei se estavam ali para adquirir conhecimento, acreditem em mim! A maior parte está na escola porque a isso é compelida pelos pais, porque lhes interessa um diploma para a vida laboral ou para o ingresso na universidade, para onde vão com o mesmo objectivo: o almejado diploma! Conhecimento? Para quê? O que importa é dar matéria, engurgitá-la e regurgitá-la nos testes de avaliação (despejando-a, portanto) e obter classificações, melhores ou piores consoante o que pretendem para o futuro! Isto é a verdadeira violência escolar exercida diariamente, hora a hora, minuto a minuto, nas salas de aulas e perpetrada por grupos de jovens imaturos que, acobertados por tudo o que ouvem dizer nos mass media, olham para o professor com infinito desdém, crentes de que quem está ali não merece qualquer consideração!
 E querem saber? Não merecemos mesmo! Porque, se acaso ainda nos restasse, a todos, enquanto classe, um pingo de dignidade e de consciência de que, sem nós, tudo se desarticularia na sociedade, há muito teríamos desertado das salas de aula, em busca de outras tarefas menos degradantes. E poderia muito bem acontecer que nessa altura nos chamassem para nos darem o devido valor, a todos os níveis possíveis!

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