Esta crónica vem a propósito de um livro que acabo de ler, da jornalista Catarina Gomes, « Furriel não é nome de pai », onde esta aborda a questão dos filhos da guerra, semeados por portugueses em ventres guineenses (e outros) e que ficaram órfãos de pais incógnitos.
Não querendo entrar nas razões que motivaram esta fuga para a frente, li com alguma emoção a dor deste vazio criado na vida de crianças nascidas destes amores erráticos e lembrei-me de um ex-militar português em Bissorã, Guiné-Bissau, que conheci por mero acaso num centro de reabilitação onde tive um familiar internado durante um pequeno período de tempo. Nas visitas que fazia, encontrava-o sempre com a família na sala comum e, invariavelmente, metia-se com a minha filha pequenina e falava-me da Guiné-Bissau, de onde ela é originária, e onde ele cumpriu o serviço militar.
Perguntava com uma curiosidade quase infantil como está hoje Bissau, se ainda existe o quartel em Bissorã, se Quinhamel ainda é bonito, continuarão as mangas com aquele saber único no mundo ou se ainda chove muito no verão. Dizia que gostava de lá voltar para ver como está agora. Ia descrevendo-lhe o que conheço e ele ia relembrando o que ali viu e viveu. Prometi levar-lhe o « Guia Turístico: À descoberta da Guiné-Bissau » que escrevi em co-autoria com a Marta Rosa, da ONG Afectos com Letras, para poder ver as fotografias dos locais que conheceu e onde viveu durante a jornada guineense.
Num dos dias, a minha filha tentava comandar a vontade de um cardume de peixes a quem dava ordens do lado de cá do vidro do aquário e ele abeirou-se a arrastar a sua cadeira de rodas para me dizer «a sua menina é mesmo muito bonita » e, imediatamente, num pranto incontrolável continuou « lembra-me aquelas crianças a quem tanto mal fizemos numa tabanca, numa das nossas missões ». Para meu alívio, não conseguiu continuar a descrever o que lhe atormentava a memória, pois tenho a mais absoluta certeza que não ia gostar de ouvir tais pormenores. Sofreu ali uma descarga emocional sem precedentes, que lhe permitiu exorcisar uma dor que trazia consigo há décadas. A mulher, ali ao lado, disse-me que ele nunca falou da guerra nem do que passou por lá, que tinha falado mais na Guiné-Bissau nestes dias em que nos cruzámos naquele centro de reabilitação que em toda a vida em comum.
O guia turístico chegou-lhe por outras mãos pois não me voltei a cruzar com ele mas marcou-me aquele dia em que uma necessidade de reconciliação com o passado o fez recordar algumas das piores cicatrizes da guerra que lhe minavam a memória.
Talvez também este livro de que falo aqui hoje possa ser uma catarse para aqueles militares que viraram costas a um passado duro de guerra mas com consequências no futuro de muitas crianças e, quem sabe, depois de tropeçarem nele e o lerem, voltem ao terreno para as procurar e perfilhar, mesmo já adultas.
Assim como é uma reconciliação consigo e com um povo a viagem daqueles ex-soldados que hoje em dia aterram em Bissau para matar saudades de um tempo e de uma Guiné-Bissau que não existe mais, mas que os acolhe com a doçura típica desta terra de sorriso fácil. O chamado turismo da saudade, tão em voga nos países PALOP e que se pode transformar num segmento de valor económico para os países que tantos anos depois voltam a receber estes homens num registo bem mais fraterno.