Dizem algumas vozes autorizadas que a Filosofia é imprescindível no currículo escolar dos jovens. Dizem ainda que abrir o debate nas salas de aula sobre questões fundamentais que os preocupam deveria alargar o campo da Filosofia na escola.
Há muito tempo que percebi esta necessidade e, por essa razão, fiz das minhas aulas o teatro adequado para o tratamento de temas, gerais e específicos, capazes de, depois de aprofundados, explicitados, questionados se tornarem guias para a vida.
Confesso que tive que realizar esta tarefa à revelia dos programas ou então, contornando as questões de tal modo, que nos fosse possível – a mim e aos alunos – perceber a relação entre, por exemplo, o pensamento de um filósofo clássico e o nosso próprio tempo.
Há uns anos atrás era obrigatório ler integralmente o Discurso do Método de Descartes, no 11° ano.
Ora, Descartes viveu no século XVII e poderá pensar – se que este pequeno livro se desactualizou, nada podendo trazer de novo ao nosso ultra – avançado tempo. Ciente desta conjectura, comum a muitos, dispus-me a fazer com os alunos a leitura necessária da obra do pensador.
Sendo um Discurso sobre o Método, útil para servir de guia nos pequenos e grandes momentos da vida do homem, o objectivo fundamental da sua leitura e do seu estudo deveria ser a percepção da importância de seguir regras exactas, simples e objectivas no traçar dos caminhos da vida. Elas estão lá, essas quatro regras, que, não duvidemos, se forem seguidas sempre ( esta é a condição essencial) poderão resolver todos os problemas.
Assim escreve René Descartes :
“(…) em vez desse grande número de preceitos que constituem a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de os observar.
O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número possível de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver.
O terceiro, conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos; e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, fazer sempre enumerações tão complexas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de nada omitir.
René Descartes, in ‘Discurso do Método’ “
Se detivermos verdadeiramente a nossa atenção nestes quatro preceitos e nos dispusermos a segui-los, veremos que muitas dificuldades no nosso dia a dia poderiam ter, claramente, solução. Segundo o filósofo que foi, antes de mais, um eminente matemático, mesmo os mais intrincados problemas e todas as questões da geometria e da álgebra poderiam ser cabalmente resolvidos.
Convidei sempre os alunos a praticarem este método, aplicando – o às mais diversas situações.
Era obrigatório estudar Kant e o seu imperativo categórico (e ainda é ) . Mas Kant é um filósofo muito pouco acessível, a não ser que façamos a exacta contextualização do seu pensamento e do projecto que empreendeu, na Prússia do século XVIII, mais exactamente na, hoje inexistente, cidade de Konigsberg – de onde nunca saiu. Tornar este pensador quotidiano e útil para as mentes jovens só é possível se os sensibilizarmos quanto à importância do dever e do respeito pela lei na sociedade a que aceitamos, tacitamente, pertencer.
“Age de tal maneira que uses a humanidade, quer na tua pessoa, quer na pessoa de outrem, sempre e exclusivamente como um fim e nunca como um meio.”
E ainda:
“Age de tal maneira que possas querer que a norma da tua conduta possa tornar-se em norma de conduta universal. “
Emanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes
Reflectir sobre estes mandamentos morais permitirá a qualquer um entender – se a si mesmo, no contexto social que habita, e agir correctamente em todas as situações. De menos fácil aplicação do que as regras do método de Descartes, estes imperativos morais trazem, em si, contudo, o segredo da resolução da totalidade dos problemas do homem.
“Sê um fim para ti mesmo “, ou seja escolhe o que te é favorável, sem traíres a tua natureza, não comercies contigo próprio, não te vendas ; e ainda “Vê nos outros um fim em si mesmos e não um meio para atingires os teus fins” , e logo não uses o amigo para servir os teus interesses, não o manipules – eis a regra de ouro para um mundo justo e digno.
“Em todos os momentos, faz o que pode ser universalizado”, “o que podes querer que seja universalizado”, ou seja, consulta a tua vontade e vê se queres um mundo em que a mentira seja lei, ou o roubo, ou mesmo o suicídio. E se puderes querer universalizar uma certa conduta, segue – a e agirás bem, já que a vontade humana é boa; mas abstém -te de agir caso a vontade te segrede que não queres universalizar um certo acto, um certo gesto.
Poderia multiplicar os exemplos e dar, desta forma, testemunho do carácter prático de toda a Filosofia, mostrar que, se realmente quisermos e soubermos ler com atenção , qualquer dos grandes pensadores, por mais antigos que os consideremos, deixou abundantes preceitos para encaminhar a humanidade na tarefa difícil de viver.
E se, por qualquer razão, nos escassearem recursos, tentemos praticar a máxima ou anti-máxima de Wittgenstein:
“O que se pode dizer deve ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio.”
Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico – Filosófico
Queiramos ou não admiti-lo, a Filosofia é imprescindível para os jovens e para os menos jovens, já o afirmava Epicuro.
“Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la…”
Carta sobre a felicidade ( a Meneceu)