Fernando era o mestre da alcunha. Detestava tratar as pessoas pelos nomes. Era um enfado para si aquele trato sem uma pitada de humor ou enxovalho.
Toda a gente tinha uma característica distintiva ou uma estória caricata que pudesse ser o mote para uma boa alcunha.
Fernando acordava habitualmente as seis da manhã, saía de casa às oito e encontrava sempre na porta do prédio a “formiga atómica” , uma idosa espevitada, baixinha e magrinha que habitava o terceiro esquerdo.
Comprava o jornal no “monhé”, cujo quiosque ficava junto à paragem do autocarro que era, habitualmente, conduzido pelo “careca”.
Na portaria da empresa estava o “barrote queimado” de serviço, tendo vindo render o “escadote”.
Encontrou a “bitoque”, a moça da contabilidade, no elevador, e quando chegou ao seu departamento já lá estavam, como habitualmente, o “ceroulas”, o “orelhas”, o “coxo” e a “rodízio”.
Só mais tarde chegou o chefe a quem Fernando alcunhava de “gayolas”.
O dia decorreu dentro da normalidade, na azáfama das horas que correm enquanto o tempo se estreita nos ponteiro do relógio.
Despediu-se dos colegas, disse adeus ao porteiro e entrou no autocarro.
Já perto de casa viu a “formiga atómica” com uma nova amiga, dirigiu-se a esta e perguntou-lhe o nome da cachorra e, nesse momento, uma expressão horrorizada dominou-lhe o rosto. Virou costas e seguiu escada acima.
Alice! Aquele nome ficou a martelar-lhe na cabeça toda a noite. Como era possível tamanha desfaçatez? Como era possível tão grande desrespeito pela raça humana? Como se atreveu a “velha” a colocar à cachorra nome de gente?
Nessa noite não dormiu!
Fernando nunca conseguiu perdoar a já malograda idosa por tal atrevimento. Desde aquele dia até à sua morte, vinte anos se passaram e, por vontade expressa de Fernando, nunca mais se falaram.