Há uns anos, um amigo comum apresentou-me o Eng m. Daniel Nunes no aeroporto de Lisboa. Foi-me descrito como um grande intelectual e dono da maior biblioteca africana existente em Portugal e no mundo lusófono. Se calhar também no mundo.
Um homem de traços dóceis e trato fácil, de conversa fluída e que começou a falar de rajada sobre a Guiné-Bissau, país para onde eu estava de partida e pelo qual percebeu o meu grande apreço.
Cabo verdiano de origem, é conterrâneo de Amilcar Cabral, pai da nação de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, talvez por isso o profundo conhecimento que mostrou ter deste último país.
A conversa acabou com humor com o Daniel a dizer-me para dar um pulinho ao bairro de Bissau Velho e ver com atenção as casas de banho (ou o que resta delas) dos imóveis que em tempos coloniais eram ocupadas pelos portugueses. Segundo ele, só ali iria encontrar chuveiros, absolutamente nenhuma banheira, uma prova de que os portugueses nunca se quiseram ali demorar, caso contrário teriam feito banheiras para uns banhos mais descansados e retemperadores.
Segui viagem para Bissau com aquelas palavras a remoerem cá dentro. Seria mesmo verdade ou tão só a excentricidade e a ironia de quem conhece a história portuguesa em África melhor que ninguém?
Já em Bissau, a curiosidade levou-me até várias casas coloniais, algumas delas em ruínas e o meu olho aventurou-se sempre para lá das paredes da sala até aos quartos de banho, em busca da confirmação da teoria ouvida no aeroporto. Até hoje, e vários anos se passaram, é com piada que relembro e confirmo a tese do Eng Daniel Nunes: foi passar, tomar um duche rápido e partir com a pressa imposta pela história da descolonização. Na verdade ainda não encontrei banheiras!
Este mês, quando eu chegava a Bissau, voltámos a encontrar-nos. Amigos comuns propunham-se apresentar-nos quando dispensámos tal momento ao lembrar com humor a nossa conversa das casas de banho. Confessei-lhe ter passado a olhar a arquitetura guineense com outro interesse para comprovar se tinha razão e acabei por lha dar, estes anos todos passados. Acho que foram oito anos.
Agora, era o Eng Daniel Nunes que estava de partida de Bissau para Lisboa, depois de uns dias na Guiné a gravar um documentário sobre a vida dele para um canal de televisão português.
Entre abraços de reencontro e logo de despedida, este grande intelectual da lusofonia disse-me do meio do seu sorriso docemente infantil e inundado de cultura “Nunca te preocupes com os pretos, Joana. Eles são teus amigos.
O branco só tem dois inimigos aqui em África: o próprio branco e o mosquito.” E com esta deixa entrou para o carro, de partida para o aeroporto.
Eu dali saí para as cerimónias dos 59 anos do massacre do Pidjiguiti, um episódio sangrento da história guineense e que se saldou em cerca de 50 mortos, segundo números oficiais da época. Nesta evocação dos 59 anos houve uma reconstituição feita por um grupo de teatro que encenou a greve dos estivadores que pediam melhores salários e que foram enfrentados por uma repressão policial fortíssima comandada pela PIDE.
Assisti à cerimónia ali no meio de alguns dos sobreviventes e de muitos descendentes ou simples cidadãos que, como eu, foram ali honrar os que lutaram pelos seus direitos de forma digna. Não era a única branca ou sequer a única portuguesa, vi lá pelo menos mais dois que andavam a filmar. Mas dei por mim, perdida em pensamentos e a relembrar as palavras do Daniel Nunes: “Nunca te preocupes com os pretos, Joana. Eles são teus amigos. O branco só tem dois inimigos aqui em África: o próprio branco e o mosquito.” E mais uma vez, dei-lhe razão. Toda a razão.