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Cultura, Literatura e Filosofia

“O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS”*

Para todo aquele que procura a verdade, perceber que um facto, um acontecimento, uma história têm sempre, pelo menos, duas versões, pode ser aterrador. Normalmente, essa tomada de consciência, acarreta atitudes dogmáticas ou cépticas; menos frequentemente engendra o relativismo.
O dogmático obstina-se em acreditar numa certa perspectiva, em geral, a dele próprio; o céptico nega, em geral, toda e qualquer verdade, incluindo a sua, e pode precipitar-se em perigosos abismos de apatia e solipsismo. Poderíamos considerar que o relativista é mais sábio, já que, estabelecendo o meio termo, traçada a bissectriz entre os dois extremos, fica mais próximo da certeza e mais afastado do erro. Contudo, nenhum deles pode afirmar que encontrou a verdade, ou que ela é simplesmente incognoscível ou ainda que ” no meio estará a virtude “.
Imaginem uma mesma situação vivida por duas pessoas. Por exemplo, um casal prepara – se para sair de casa e assistir a uma cerimónia de casamento. Nessa festa, a mulher comove – se, já que aquele que casava havia sido, antes, o seu marido. Mas a razão de ser desta interpretação da emoção da mulher é somente o ponto de vista do marido actual; ela conta – lhe, depois, que se emocionou até às lágrimas porque sentiu a necessidade de lhe fazer uma revelação dolorosa.
Na história que o homem narra, a mulher usa um vestido comprido, amarelo, e traz o cabelo apanhado; porém, a narrativa dela inclui um vestido curto, estampado, de fundo também amarelo e o cabelo cai – lhe, solto, nos ombros. Pormenores insignificantes, dir-me-ão. E contudo as diferentes narrativas trazem a marca subjectiva de uma visão intransmissível. Jamais saberemos se o vestido era comprido ou curto, amarelo estreme ou estampado de flores e nunca poderemos afirmar com certeza se ela levava presos os cabelos ou soltos sobre os ombros.
Uma terceira pessoa, ausente da festa, a quem fosse apresentada a versão do vestido amarelo comprido, nenhuma razão teria para duvidar. Do mesmo modo, uma quarta pessoa, também ausente, consideraria adequado e verosímil o vestido curto estampado.
Simultaneamente, cada um dos convidados iria narrar estes factos consoante a sua perspectiva. E o vestido, talvez passasse a ser laranja e pelo meio da perna, ou verde e assimétrico ou, no limite, convertido numas calças amplas de tecido azul.
Quanto às razões da emoção, na hora do casamento, a ex – mulher do noivo diria ao marido actual que não tinha a certeza se a filha de dois anos de ambos era realmente dele, pois tinha dormido com o ex – marido, num intervalo da relação deles, coincidente com o presumível momento da concepção; ele, porém, contaria a história de outro modo, dizendo ter saído de carro da festa, tocado pelo álcool, que no caminho encontrara a mulher, também em fuga, e testemunha do atropelamento fatal de um convidado, perpetrado por ele. Por ter sido ela a causa involuntária do acidente pois, ao repelir os avanços do indivíduo o empurrara para a estrada, decidem ambos abandonar o cadáver, regressar à festa, dançar como se não houvesse nada. E é então que ela lhe diz : “Não sei se a filha que temos é tua, pois dormi com o meu ex – marido! ”
Duas histórias diferentes, ainda que convergentes num certo ponto: porque, cada um deles, enfatizou um aspecto, obliterando outro, realçou um pormenor, deixando os restantes na obscuridade.
Perguntemos: qual deles mentiu? Provavelmente nenhum, porque cada um sentiu os acontecimentos daquela específica e não verificável maneira, já que assim os viveram na zona recôndita das suas mentes.
Alguém, exterior às duas personagens que escutasse as histórias – ou a mesma história, vista de dois ângulos – sentir-se – ia logrado e não conseguiria aceder à compreensão dos factos na sua crua realidade. E, se se dispusesse a ordenar as peças do xadrez das duas histórias, construiria, sem dúvida, uma terceira narrativa, repleta das suas próprias interpretações.
É por esta razão que a busca da verdade, seja ela filosófica, científica, jurídica ou do senso comum, encontra entraves contínuos, recuos, avanços e novos recuos e apenas a perplexidade permanece.
“O homem é a medida de todas as coisas ” , eis a sentença sábia de Protágoras, que ilustra, de um modo simples, mas extremamente complexo, a natureza tão humana, e logo tão subjectiva, do conhecimento da verdade.

*Protágoras de Abdera, século V a.C.

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