Percebo, aliás sem nenhum constrangimento, que sou uma sentimental. Passam por mim os dias, os factos, as pessoas e o que guardo intimamente e me orienta as memórias é a capacidade, intrínseca a mim, de sentir – de os sentir. O intelecto e a organização discursiva do pensamento são opções com que a mente se escuda face à premência emotiva que me exprime. E nem sempre alcanço, pelas palavras, transmitir o âmago do ser que se afirma, sentindo.
Há pouco ouvi o arrulhar suave de um pássaro, oculto nos recessos do pinheiral e imaginei – o num ninho aconchegante acompanhado das crias, de olhos irrequietos e asas ainda implumes. A seguir quis ver quem assim encantava o ar do crepúsculo; mas soube que ele não viria, se o chamasse e fugiria de mim, se acaso o procurasse por entre as árvores.
Um destes dias, deparei com três gatinhos, dois pretos e um malhado de branco e amarelo, num pátio por detrás de um portão. Chamei – os. E eles olharam – me com um ar expectante, que me pareceu de súplica.
Vi, depois, rebanhos de ovelhas e manadas de bois, postos a pastar em prados desabrigados, ao sol inclemente do início da tarde.
Quis protegê – los a todos, dar um abrigo ao pássaro, uma casa aos gatos, um pedaço de sombra aos que pastavam. E soube que o meu mundo nada pode fazer para acolher e dar cumprimento às necessidades profundas destes seres, sensíveis como eu. Soube ainda que, quando os homens se rodeiam de animais e os alimentam ou abrigam, têm em mente necessidades humanas, pois desejam comê – los ou usufruir – lhes da companhia, sem curar das suas características intrínsecas. Soube que, eu própria, agora a exprimir-se deste modo, fui, em tempos, carcereira de animais : e ainda sou. Como vou saber se as minhas gatas, que pouco mais conhecem que os espaços e os odores da minha casa, de quem cuido, como sei e posso, e de quem elas gostam acima de todos os outros e ao seu modo específico, têm, na vida, tudo aquilo que merecem ou, por outro lado, o que acima de tudo lhes convém, enquanto gatas?
Nunca serei capaz de responder a estas questões. Nunca saberei o que vai nos seus cérebros, que pensamentos lhes ocorrem, que sonhos lhes povoam o sono e como me sentem, enquanto responsável pelas suas vidas. Vejo – as diariamente, converso com elas, afago – as, alimento – as – e convenço -me que são felizes. Serão mesmo?
O que fará feliz um gato, em casa de humanos, uma ovelha, num prado de humanos, um pássaro, num pinhal de humanos? Em que poderá consistir a sua felicidade, ou seja, o pleno acordo entre as necessidades específicas da sua natureza e o que lhes é dado sentir e conhecer?
A felicidade dos homens é de outra categoria. Eis porque não serve de referência para avaliarmos o que tornará plena a existência dos restantes animais que consideramos inferiores a nós e escravizamos ou condenamos à morte. A felicidade dos homens engendra – se em meros usufrutos de coisas e de pessoas, em posse daquilo a que chamam bens, em ânsias de riqueza ou de poder ou de fama ou de qualquer outra coisa. A felicidade dos homens cifra – se em ninharias espúrias que, uma vez consumidas, deixam um travo de insatisfação e uma busca desesperada por novos estímulos. Sensoriais, a maior parte deles, outros afectivos ou de mera circunstância, e muito menos os que dizem respeito à mente, à inteligência, ao espírito.
Superiores, ao pássaro que arrulha, ao boi e à ovelha que pastam, ao gato que suplica o que quer que seja, nós , humanos, perdidos em tumultos irracionais, alheios ao íntimo mais profundo do nosso ser e crendo saber tudo – de tudo? Não tenho a certeza disso. Não vejo, neste mundo por onde vamos escavando crateras de inconsciência e desordem, qualquer laivo de superioridade nossa.
Por isso me afirmo, hoje, como sentimental e mais ainda: tenho uma invencível nostalgia por ambientes não contaminados, sítios, dentro e fora de mim, onde o ar seja lavado e o silêncio possa, finalmente, ouvir-se.