Cultura, Literatura e Filosofia

O FILME

UMA CÂMARA de filmar sobrevoa uma piscina azul, um bairro de lata, um buraco por onde rompe uma cascata, uma dança guerreira de negros cobertos de plumas, com os sexos túmidos, regurgitando da pele de carneiro que os veste, idiotas brancos vestidos com fatos de cerimónia batem palmas para a areia deserta, de onde o touro se retirou enjoado do cheiro do seu próprio sangue.
Uma câmara de filmar atravessa a roda no tempo ao som do Danúbio Azul e a canção da manhã de Rão Kiao prende-se à cadeira flutuante do realizador deste filme com actores agrilhoados ao rochedo do Prometeu de Ésquilo… Ésquilo ou esquilo? É apenas o problema do acento e da maiúscula porque, quanto à importância na recta da vida, Ésquilo e esquilo equivalem-se.
Eles quiseram fazer o filme, e fizeram-no. E o macarrão com molho de tomate em fanfarras orgíacas de Arrabal, cavalo louco, mistura-se às alucinações buñuelescas de Tristanas perversas e Belas de Dia, só amadas pelas noites diurnas dos desejos do amante rejeitado. Um Fellini-Clown, de um Armacord desamarrado das cordas lógicas, com crianças em nevoeiros soalhentos, funde-se ao teorema de Pasolini, Pedro e Paulo, que acompanharam Cristo sem teoremas, ambos negadores e afirmadores do lago de Jordão, da estrada de Damasco, das fontes da Judeia, e a gueixa castradora de samurais do Oshima nipónico passeia-se ainda pela Tóquio brutalista de betão e ruído.
Eles quiseram fazer o filme, e foram buscar Laranjas Mecânicas a que lavaram o cérebro para o deixarem sujar de novo em sinfonias de Beethoven e orgias trepidantes, foram buscar pesadelos bergmanianos com lágrimas e sussurros, em vermelhos e brancos de cenários a preto e cinzento e trouxeram o beco sem saída de um Polanski com facas na água em Chinatowns pejadas de vampiros que não lhes morderam o pescoço.
 Eles quiseram fazer o filme e fizeram-no, e levaram Shakespeare trajado de César e mataram o Brutus assassino de César com a voz rouca de Marlon Brando, Padrinho mafioso de Coppola. E depois, pegaram na auto-estrada, com gente trucidada por baixo dos veículos, e chamaram a isso Week-End e foi Goddard quem reabilitou a prostituta loira que queria apenas viver a sua vida mas a quem forçaram a dar explicações de tudo e sobre tudo. A  preto e branco filmaram as cores orgíacas do Couraçado Potemkine de Eisenstein, ou Einstein, cuja relatividade se acrescenta aos couraçados de uma guerra de gregos contra troianos sem Helenas fascinantes a servir de motivo.
Este é possivelmente o mais verdadeiro de todos os filmes. Este é possivelmente o filme que nunca ninguém fez, este é possivelmente o mais impossível dos filmes possíveis.

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