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A SETE CENTÍMETROS DA VIDA

Vamos chamar-lhe Afonso. Até podia ser António. Tanto faz para a história, o importante é proteger-lhe a identidade, apenas manterei o país de origem. E os factos, porque esses sim, são o motivo da crónica.

A traquinice dos seus 7 anos feitos há precisamente uma semana, fê-lo engolir uma agulha de encher bolas de futebol. A aflição dos pais, levou-o ao hospital mais próximo de casa, a cerca de 10 km, que disse nada poder fazer. E acredito que sim. Conheço aquele hospital. Não tem um único médico, vive do trabalho de um conjunto de enfermeiros. Ali, essencialmente, fazem-se partos, dão-se vacinas, pesam-se crianças e vende-se a ilusão de que se podem salvar vidas. Pura ilusão. Ficou lá 3 ou 4 dias porque não valia a pena ir a Bissau, disseram ao pai, os médicos estavam em greve. Mal termina o protesto dos médicos, pai e criança apanham o barco para Bissau e são recebidos no hospital de referência do país, o Hospital Simão Mendes. Também aqui lhe dizem não poder fazer nada, não há forma de remover a agulha. talvez no hospital Pediátrico de Bôr possam fazer alguma coisa.

Lá vai o pai com o nosso Afonso até Bôr onde um raio-x deteta a agulha alojada algures no esófago, ou traqueia, ou brônquio. Mas… também aqui nada conseguem fazer.

Esgotadas as possibilidades no país, pensa-se em recorrer ao país vizinho, o Senegal. Aqui até há um aparelho na cidade fronteiriça de Zinguinchor que permite a remoção do corpo estranho que se alojou no corpo franzino, mas, azar danado… está avariada!

Os dias passam, o Afonso vive há já um mês e meio com aquela agulha alojada no seu corpo e as mazelas naturalmente fazem-se notar. Febres, vómitos e uma tosse preocupante vão tornando o seu corpo mais vulnerável e a esperança começa a esfumar-se. O pai agarra-se aos raio-x (dois) que fazem ao seu menino, feliz por ver que a agulha não se mexeu pois explicaram-lhe que há o risco de perfurar os pulmões (grave) ou de descer para o estômago ou intestinos (gravíssimo) o que vai criar danos com consequências imprevisíveis, mas pouco recomendáveis.

Uma junta médica, burocrática como todas, abre a esperança para um tratamento no estrangeiro. Vários obstáculos têm que ser ultrapassados em tempo record. O Afonso não tem passaporte. Mas também não tem BI… o problema é que os próprios pais não têm qualquer documento identificativo, a não ser um cartão de eleitor providencial que consegue desbloquear o problema.  Com a cédula de nascimento do Afonso e o cartão de eleitor do pai, sai um passaporte quase a ferros. Teve uma espera suplementar porque naqueles dias, chegou uma nota ao centro de emissão dos passaportes dizendo que a prioridade era dar passaporte aos peregrinos que iam a Meca. Não vou comentar… perderam-se dois dias úteis que poderiam ter sido cruciais na vida de uma criança de sete anos. Recebido o passaporte, falta o visto com o acesso à vida. Chega ao final de uma tarde que permite ao Afonso embarcar no avião que sai nessa mesma noite de Bissau, com destino a Lisboa. O pai não vai, não conseguiu fazer o passaporte. Mas o que lhe importa? O que ele pede, implora, é que lhe salvem o filho.

Acolhido por uma família providencial portuguesa que o apanha no aeroporto e o recebe como um filho acabado de nascer no seu núcleo mais íntimo , segue para um hospital da capital onde a consulta tinha sido marcada com o apoio de um médico que o assistiu na Guiné-Bissau no âmbito de uma missão solidária da ONG SSTENE que levou vários médicos àquele país. Daqui é transferido para outro hospital onde é operado de urgência para remoção da agulha que está alojada num dos brônquios.  A intervenção é rápida e coroada de sucesso. Retiram-lhe uma agulha de 7 cm. Sete centímetros, perceberam bem(!). Mas o Afonso tem que ficar internado numa ala isolada durante alguns dias pois uma pneumonia corroía o seu frágil corpo de sete anos e o perigo continuava à espreita. É velado dia e noite pela família que o acolheu e depois segue para sua casa onde fica quatro semanas em recuperação. Como um deles, experimenta um dia a dia diferente de tudo o que conhecia até agora. Faz parte da família.

Na semana passada recebeu alta oficial por parte da equipa médica que o acompanhou. Está curado. Da pneumonia e das sequelas deixadas pela agulha no seu corpo. Pode voltar a casa. Bem, melhor dizendo, a Bissau. Na verdade, a sua casa, no interior, sofreu as consequências da rigorosa época das chuvas que se vive e voou o telhado. O pai anda a tentar arranjar e ficará uns tempos na capital até voltar a ter teto que abrigue a enorme família do Afonso, que conta com sete irmãos.

Para regressar a casa faltava a autorização de embarque do pai que teve que vir do interior até à capital assinar o documento e proceder ao reconhecimento notarial. Mas o barco estava avariado, não fazendo a rota habitual de duas horas e meia desde sua casa até à capital. Tentou uma piroga, mas também não estava a circular nesse dia. Decidiu tentar a via terrestre que lhe tomou um dia e meio com uma avaria do carro pelo caminho, e uma noite passada no mato. Chegado finalmente a Bissau, assinou o papel que permitia o regresso e este chegou a Portugal por portador amigo logo no dia seguinte.

Impossível imaginar o turbilhão que irá na cabeça do Afonso depois desta experiência traumática e simultaneamente extraordinária que viveu. A de conhecer um mundo novo que o tirou da pacatez do interior da Guiné-Bissau onde a vida decorre simples e dura. Experimentou pela primeira vez andar de barco, de carro, de avião, de bicicleta; comeu dezenas de alimentos novos na sua dieta, habituada simplesmente ao arroz branco e à manga ou banana que crescem junto de casa; viu avenidas, museus, televisão, futebol, uma cidade cheia de prédios, com luz, agua a correr das torneiras. Tudo novo. E maravilhoso.

O Afonso viajou esta semana de regresso aos braços e abraços dos seus. Foi uma mistura muito grande de sentimentos tanto do lado dos pais como dele. O pai tinha a esperança de que ele ficasse em Portugal a estudar. Não é desamor este desapego. É, pelo contrário, muito amor. Só este justifica o empenho numa separação que poderia dar um futuro melhor ao filho. O Afonso, depois do que viu e viveu, também resistiu a regressar ao seu mundo simples, demasiado pobre e sem quase nenhumas oportunidades. Tinha no aeroporto à espera dele a família e uma bicicleta nova que lhe foi prometida.

É dramático pensar que como este menino, há muitos outros na Guiné-Bissau que necessitam de cuidados médicos urgentes que não podem receber por falta de recursos nos centros hospitalares. E que morrem por tão pouco, como o Afonso podia ter morrido, pois chegou a Portugal num estado muito debilitado e numa situação clínica grave.

Mas hoje queria partilhar uma história feliz, no meio de tantas outras de final trágico num país onde infelizmente a saúde só existe se não necessitar de ser tratada. A Guiné-Bissau.

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