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Cultura, Literatura e Filosofia

AMOR EM DEDINHOS DOS PÉS ou A MORTE DOS VIOLINOS NO ALENTEJO

As minhas memórias começam nos tempos da Escola Primária. Antes disso, não me lembro de mais nada. Apenas névoas. Apenas manchas. Ou talvez não queira mesmo escrever nada sobre isso. Apenas.
[E o título? Sempre ficam aqueles dois?]
O Vasco foi buscar o tabuleiro do Monopólio e fiquei sozinho na sala enquanto a Joaninha e o seu grupo de amigas e o Carlos e o seu grupo de amigos se espalhavam pelo resto da casa como se andassem a conhecer e a escrever sobre todos os cantos que encontravam.
Havia dois grupos de amigos nos meus colegas da escola. As meninas amiguinhas da Joaninha e os meninos amiguinhos do Carlos onde se inseria o Vasco. Eu era um caso à parte. Toleravam-me nos dois grupos, mas não estava realmente em nenhum deles. Não era menina para estar no grupo da Joaninha, mas também não sabia jogar o suficiente à bola. Por isso, ia sempre à baliza, mas parecia que isso não chegava para entrar definitivamente no grupo do Carlos. Continuava à experiência. Por quanto tempo? Nunca diziam.
– Parece que tens dois pés esquerdos! Ficas lá atrás e tenta ao menos não sofrer golos! – diziam eles sempre que pedia para jogar à frente.
Felizmente o Paulinho foi-se embora. Regressou ao Brasil. Era o gordo da turma. E era sempre ele que ia à baliza antes de mim. Era o mais velho e como tinham medo dele, deixaram-no entrar no grupo. Mas raramente vinha jogar Monopólio porque sempre que se sentava a barriga ainda parecia maior e tinha que tirar um botão das calças pelo menos uns segundos antes dele rebentar. As raparigas riam-se, tapavam a boca com a mão e os rapazes controlavam-se porque ele começava a olhar muito sério para eles. Mesmo assim naquele dia acabou por ir, mas só foi fazer duas rondas. Uma outra vez veio para ajudar a carregar uma prateleira nova para a sala. E foi aí…
Já não me lembro como é que descobri aquele livro e porque é que olhei de uma forma tão especial para ele. Lembro-me da minha preocupação com a prateleira. Parecia sempre que ia cair sobre alguém. Deve ter sido por isso. Ou então foi o espírito do Paulinho. De qualquer das formas, o livro chamou por mim. “Amor em Dedinhos dos Pés” era o título.
[Então foi daí que tiraste a ideia do título?]
Nunca cheguei a saber se a Joaninha alguma vez percebeu que sempre que eu a fazia rir também era para demonstrar que gostava muito dela e que poemas de amor também podiam ser inspirados em gargalhadas. Ou por aqueles escritos pequeninos, dobrados até ao limite e deixados a correr na palma da mão sem ficar à espera da reação.
Faltou o teu beijo, Joaninha.
Deixei o papel com a quantidade suficiente de dobras.
Suficientes para eu sair a correr.
Tímido como sempre.
Uma timidez disfarçada pela escrita compulsiva.
Como seriam os dedos dos pés da Joaninha? Será que ela sentia cócegas quando fazia aquelas palhaçadas?
Viemos para casa do Vasco porque houve greve dos funcionários. Se a Escola existisse, certamente que haveria funcionários e haveria greves. Sim, certamente. E a única forma de ter todos os meus colegas juntos é eu escrever que viemos jogar Monopólio para casa dele. Mas não veio ninguém e eu estou a jogar sozinho na minha casa de mente.
Nunca saí daqui nem fui a casa dele, mas vou escrever que a minha casa é parecida com a dele.
[Há vários dias que sonhas que vives num Circo. Porque será?
Ou não será um sonho, mas sim uma realidade paralela?]
Nos meus blocos de capa preta posso escrever de tudo! E não preciso de sair daqui para ir à baliza porque nunca há ninguém que queira ir à baliza! Porque também não há bola nem balizas.
Amanhã vou mandar uma carta para o Brasil para o Paulinho vir aqui ajudar a carregar outra prateleira para a sala para eu colocar um único volume.
O “Amor em Dedinhos dos Pés”…
Vou ler em voz alta! A Joaninha vai adorar!
A minha casa não é de mim e eu sou tanto dentro da minha casa…
– Vivemos num Circo! Já estou farta das tuas lamentações! – interrompeu a minha mãe, aos gritos. O que é que queres mais? Nunca estás satisfeito com nada!
[Este era o tal sonho? Que se repetiu inúmeros dias?
A tal outra realidade?
Por que não arranjaste um título para esta parte?]
Todas as letras que depositei nos meus blocos de capa preta têm lágrimas e continuo sem perceber como é que ela não consegue ver isso.
– É pó! – gritou a minha avó.
Ai, se ela gritasse… Se ela fosse viva, provavelmente fugiam todos. Mas ela gritou, eu escrevi que ela gritou e deixei em letras que ela gritou, pronto! Não me interrompas os pensamentos, mãe! Se não, vou ter que a chamar outra vez!
– É só pó! Deixa o miúdo!
[Deixaste definitivamente as memórias da Escola Primária por um Circo?]
Se tivesse uma casa na árvore era lá que eu escrevia, mas escrevo num Circo e ninguém percebe porque escrevo aqui sem parar. Talvez porque detesto alturas! Antes o pó e os espirros da alergia!
– Anda, vamos ensaiar. Logo tens que saber as deixas de cor!
Sim, senhor, meu sargento palhaço! Mais alguma ordem? Aponto já tudo a seguir aqui no meu caderno.
– E deixa lá a porcaria desse bloco aí em cima da mesa! Para aquilo que vamos fazer não precisas dele!
Desculpa, mas não posso. Se não escrever, como é que tu existes?
A Joaninha não precisa do meu bloco para aparecer.
Olhei para a plateia e ela lá estava…
E, como da primeira vez, voltei a apaixonar-me…
– Filho, olha as pinturas para a cara! Já ficavam dentro do armário!
Mãe, devias ter herdado a paciência da avó, mas cada vez tens menos. Se calhar é porque as recordações dela também vão ficando cada vez mais fracas na tua cabeça. Foi a casa da árvore que me custou mais abandonar e depois ter que ir viver para aqui, mas sei que se voltar a escrever ela também volta a estar. No entanto, preferi descer das alturas aonde nunca estive e ir falar com o Carlos, o palhaço rico.
– A minha casa de mente e este circo de mente não existem, pois não?
O Carlos olhou muito surpreendido para mim, mas não disse nada. Continuou a fazer a minha maquilhagem de palhaço pobre.
– Eu sei que só tens 15 anos, mas a tua mãe não tem mais ninguém – acabou por dizer.
Fechei os olhos. Depois foram mil viagens com a recordação do meu pai e dos passeios que dávamos sempre que o Circo estava de férias.
A minha casa não é de mim e sou tanto aqui dentro.
A minha casa não é de mim e tenho que ser tudo lá dentro.
– Carlos, o palhaço pobre pode aparecer em palco com este bloco na mão? Pode, não pode? Fazíamos um número completamente diferente!
Escrevi que saía e voava dali para fora. Deixou de haver circo. Deixou de haver tudo. A solidão deu lugar a uma escuridão e a uma noite maravilhosa. Uma solidão apenas interrompida pelo piscar das estrelas. Abracei-me. Aos olhos do mundo apenas me protegia do frio. Aos olhos da alma procurei que nos meus blocos de capa preta ficasse a história de todas as minhas recordações. A minha vida dava um filme. Olhei para os meus dedos dos pés procurando a invisibilidade dos sapatos sem o conseguir. Já nem sequer queria saber do título do filme!
– As pinturas! Ao menos volta a colocar as pinturas no armário!
[Já disseste ao mundo que és louco?]
Acenei ao Carlos porque sabia que não o iria ver mais. Já não tinha 15 anos e todos esses anos passados a morar num circo já tinham acabado. Esta noite, já estava noutro sonho.
[Chamas sonhos e memórias às realidades paralelas?
Onde vais acordar desta vez?]
Acordei. Abri os olhos e estava no Alentejo.
– Porra para este calor! O amigo não é daqui, pois não?
O Ti Zé era um castiço! Daqui a umas linhas já faz parte da minha família e esta pergunta deixa de fazer qualquer sentido. Pelo que estou a perceber, aqui nesta terra somos todos da família de alguém que outro alguém quer sempre saber qual é!
– A Ti Maria é uma coscuvilheira! Ontem saí para comprar pão e como fiquei ali um bocadinho a fazer tempo no Café do Bernardo, foi logo dizer que eu já andava nos copos! Arre porra, mulher dum raio!
[Só os outros é que são coscuvilheiros, claro…
O cabrão do velho quer é olhar para a empregada nova!]
– Gosta de concertina?
– Prefiro o violino. Noutro sonho… quer dizer, noutro tempos cheguei a fazer de palhaço pobre e mais à frente do número, começava a tocar viol…
– Violino?! – gritou ele sem me deixar acabar. No Alentejo? Um violino? Isso não faz aqui nada! Eu vi logo que você não era daqui! Até mais logo, amigo. Ainda tenho que voltar ao Café. Deixei lá ficar a minha carteira…
Fui ao cemitério tentar perceber a minha árvore genológica e colocar a conversa em dia.
Quando fechei os olhos e os abri para lhe responder já tinha o estômago em chamas e já só me lembrava da Joaninha. Queria tocar-lhe, mas as minhas mãos só agarravam o vazio.
O Carlos adorava o meu violino e todos os sons que saiam lá de dentro. O meu número deixava de ser um número comum de palhaços. A minha mãe detestava e dizia que aquilo não tinha nada a ver com o Circo e muito menos com um número de palhaços. E não cheguei a atuar com o bloco de capa preta debaixo do braço…
– Nunca fui a um Circo. Alguém lá toca concertina? – perguntou o Ti Zé.
Ignorei a dor no estômago e pensei novamente na Joaninha. Agarrei no violino e cada som que saía fez regressar os lábios dela aos meus.
[O veneno já começa a queimar-te todo por dentro!]
E depois a minha mente trouxe o meu Pai. Foi ele que me ensinou a tocar violino. Estou a ouvi-lo…
– Porra, consigo ainda ouvir-te, Pai! A música entra nos meus ouvidos como se estivesses a adormecer-me. As histórias e todas aquelas coisas que a tua imaginação ia buscar não sei aonde. Pai, tenho tantas saudades tuas! Sabes, hoje voltei a perder-me naquelas que contavas todas as noites quando éramos confidentes inseparáveis…
Está um vento quente.
Fecho os olhos e abraço-te, beijo-te…
Sabes ainda ao mesmo sem aqui estares, Joaninha!
– Avisaste-me, mas perdi-me como tu te perdeste com a mãe, lembras-te? Não te queriam para casares com ela, lembras-te? Porque haveria de ser eu diferente se somos a mesma carne e a mesma essência? Hoje estás frio. Quando o Sol não bate na campa, o mármore ainda fica mais frio.
Trouxe-me os teus lábios, Joaninha!
Pelas letras musicais do violino que encantava os nossos serões…
– O vento é quente e mesmo assim estás vestido deste frio, Pai. Apesar disso, gosto muito de vir aqui falar contigo e pedir-te conselhos. Ela é linda, Pai! Mas perdi-me na mesma história, no mesmo eco, na mesma sombra e no mesmo espelho de como foi a tua vida!
[O veneno destrói-te por dentro e tu só pensas nela…
Ah, que moço tão apaixonado!
Esta história dramática é para conhecerem o filme da tua vida?]
Já vou ter contigo, Joaninha.
Deixa-me acabar de falar com o meu Pai…
Ontem o Ti Zé disse-me que no Alentejo ganha a concertina!
Que o violino não tem lugar por aqui…
– Pai, a mim ninguém me quer como a ti não te queriam! Lembras-te quando me contaste a tua história e a da Mãe? Um trabalhador do campo e a filha do Presidente da Junta e do dono de metade dos terrenos da aldeia? Ando cansado e perco-me na solidão e na mentira de nos encontrarmos às escondidas, Pai. E tu hoje estás ainda mais frio! É do mármore, mas o teu silêncio por vezes ainda complica mais as coisas. E abraçar a pedra não é a mesma coisa… Só vim aqui despedir-me. O bilhete vai ficar aqui preso e alguém o irá encontrar. Ela não tem coragem para enfrentar os pais e eu estou cansado. Vou deitar-me aqui ao teu lado e beber o veneno que comprei na Farmácia. Perdoa-me, mas quero que saibas que te amo muito e que tenho saudades tuas e que quero muito voltar a encontrar-te. Espera mais um pouco. Já vou ter contigo para me cantares para eu adormecer.
Joaninha, vais gostar de conhecer o meu Pai quando um dia vieres ter comigo.
Voltei a agarrar o violino para te sentir os lábios…
[O veneno já está a vencer os teus pensamentos…]
– Merda, que isto sabe mal! Sinto o corpo em chamas!
O meu Pai nunca me responde. Mas eu gosto à mesma de falar com ele e de o ouvir…
Especialmente agora que irei passar a estar mais perto dele.
Olá Pai.
Já sei que não devia ter feito aquilo…
Mas também já tinha muitas saudades tuas…
O café tinha poucas pessoas. Provavelmente mais moscas do que pessoas. O Tio Zé veio contar a novidade ao povo. Caiam-lhe as lágrimas pela face enrugada. Com a mão direita ainda segurava o violino. Teve que puxar do lenço com a mão esquerda enquanto começava a falar.
– O palerma matou-se no cemitério! Ao lado da campa do pai!
Espero que tenham guardado o bloco de capa preta.
Para perceberem o meu filme.
Para perceberem a minha paixão.
Para perceberem que o amor pode vir de qualquer lado.
Até pelos dedinhos dos pés.
Mesmo quando os violinos morrem no Alentejo.
(Texto 2° classificado no 9° Concurso Literário da Papel de Arroz Editora)

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