A vida acontece sob o signo da violência.
Acerca do universo, diz-se que surgiu de uma explosão, o big bang. O nascimento da Terra parece que resultou de uma porção do sol que se destacou dele, entrou em órbita e foi sendo violentamente transformada ao longo de milhões de anos. A Lua é consequência de um fragmento libertado da Terra e logo realizando uma rotação em torno do planeta de origem.
O homem nasce violentamente na expulsão dolorosa através de um pequeno canal; e o seu primeiro sinal de vida é um grito de aflição através do qual aprende a respirar.
Os animais, na selva, vivem em fuga ou à espreita: tentando evitar o predador ou procurando a presa de que retiram alimento. Vivem, pois, violentamente, em ambos os casos.
Os exemplos podem multiplicar – se ao infinito e as teorias aprofundadas até ao extremo: encontraremos sempre a violência como leit motiv de todo o movimento vital.
A vida humana , gerada nas convulsões violentas do acto sexual e depois dada à luz no cenário sanguinolento e estertoroso do parto, culmina na violência da morte. E as etapas do crescimento geram crises, sejam as que conduzem a criança ao adulto, sejam as que acompanham o séquito das transformações no declínio da idade.
A educação é, desde o primeiro momento, uma violentação. O bebé deve aprender a dormir e a comer a horas certas, de acordo com ajustes ditados pela cultura em que nasce. Vestem – no e calçam – no, segundo os critérios correntes, socializam – no, ensinam-lhe a andar e a produzir sons articulados. Repreendem – no quando erra ou castigam-no. Fazem – no ir à escola, ensinam-lhe centenas de habilidades e de competências. Ninguém lhe pergunta se é isso que ele quer, em primeiro lugar porque acham que não tem capacidade para escolher e depois, por hábito ou na consciência adulta de que os mais velhos sabem melhor o que convém aos novos.
A educação é, pois, um acto de violência, um séquito de imposições, uma avalanche de deveres impostos.
Quando chega à idade adulta, depois de passar anos a obedecer a regras criadas por outrem, sem oportunidade de inventar o seu próprio caminho, a sociedade impõe -lhe um conjunto limitado de opções de vida. São opções e a tal conceito subjaz a liberdade. Todavia, o condicionamento foi – se dando nos anos anteriores e o jovem adulto reage à oferta de acordo com os parâmetros que o educaram. Crendo – se livre está, no entanto, a ser coagido a trilhar um certo caminho.
Dir-me-ão que não há caminhos alternativos, que a humanização produziu este tipo de indivíduos e este género de sociedade. Aprender a andar, a falar, a estar sentado, a escrever, a ler, seguir uma carreira académica ou profissional e tudo o mais que denota o mundo em que vivemos, objectar -me – ão que é o caminho humano por excelência. Todavia, eu pergunto: será? É este o plano original de um certo ser animal, oriundo, como tantos outros, do planeta a que chamamos nosso?
Vejo, por esse mundo fora, um enorme descontentamento. Os filhos, logo que alcançam discernimento, voltam – se, amiúde, contra os pais e eles, por seu turno, lamentam até à morte as atitudes dos que deram à luz, vendo, nos seus gestos e na sua fuga, ingratidão e abandono. Homens e mulheres almejam pelo seu par e fazem, de um certo encontro, ocasião de compromisso e pretexto para celebração. Pouco tempo depois, porém, já não sabem o que fazer em conjunto: e instala – se a discórdia, a violência, a divisão.
Os povos, unidos em países, cidades, vilas e aldeias, criam os seus próprios rituais de coabitação; mas excluem-se, reciprocamente, fechando as portas das casas, temendo ser devassados ou expoliados dos seus bens ou assassinados enquanto dormem. Elegem os seus governantes, entregando -lhes os seus destinos individuais e colectivos; e logo percebem que escolheram mal ou foram traídos. E revoltam – se.
As nações, separadas por fronteiras e por línguas e costumes diversos, unem-se em parcerias, cujo ideal é a diluição dessas barreiras e a construção de um mundo coeso. Mas bem cedo uns se sobrepõem aos outros, traindo o espírito de união e gerando discórdias e guerras.
Deveria ser deste modo o mundo dos homens que insistimos em perpetuar, crendo que a humanização é, no fundo, esta contínua desordem, este caos absoluto sob o signo da violência? Quando, por exemplo, geramos um filho, fazemo-lo por razões nossas, queremos perpetuar a estirpe, deixar de nós um rasto no mundo. E ele? Se pudesse comunicar connosco, esse embrião, se pudesse conhecer a priori o plano em que o incluímos (e que é apenas nosso) aceitaria fazer parte?