Hoje viu falar-vos de uma maquina que cria tempo. Não fui eu que lhe dei o nome, foi um fotojornalista e blogger ruandês que andou pela África ocidental a ver projetos tangíveis e que fazem a diferença e se encantou por uma das três máquinas descascadoras de arroz que a ONG Afectos com letras tem em três comunidades na Guiné-Bissau. São estas a ditas criadoras de tempo. E vou explicar-vos como.
O arroz é a base alimentar na Guiné-Bissau e, maioria das vezes, o único alimento servido à refeição, ficando a carne e o peixe para dias especiais de celebração de alguma efeméride. O arroz, que outrora cobria de verde as bolanhas da Guiné-Bissau, já não tem uma produção que seja autossuficiente no país, recorrendo-se em grande escala à importação de arroz de origem e qualidade duvidosas. Fruto da falta de manutenção e de cultivo, as bolanhas foram salgando e hoje são muito poucas as pessoas que se dedicam a esta cultura tradicional do país e que dá um arroz de qualidade superior.
Mas em Barambe, uma aldeia manjaca da região Cacheu, a população ainda se dedica essencialmente ao cultivo do arroz, e ali as tarefas estão bem delineadas e divididas. O homem faz a preparação das terras, as mulheres dedicam-se a semear e a colher o arroz e, com as filhas, são responsáveis por pilar de forma manual este mesmo arroz que vai alimentar toda a família.
Esta forma de descascar manualmente o arroz segue o bonito ritual de macerar o bago de arroz com o pilão e depois fazê-lo quase dançar nuns cestos para que se faça a separação do farelo. O bago, por esta altura já se encontra bem partido e o que se obtém é aquilo a que chamamos a trinca de arroz. Apesar de pequenino, mantém o inconfundível sabor do arroz da Guiné-Bissau. O processo manual tradicional tem algumas consequências pouco vantajosas para a comunidade, a começar pelo facto de ser um trabalho normalmente feito com mão de obra feminina infantil. E, sendo moroso, tem implicações na sua pouca disponibilidade para frequentar a escola e para poder brincar. Sim, porque brincar é também um direito de qualquer criança. As mãos pequeninas e frágeis ficam calejadas, os músculos dos braços e as costas a doer neste ritual que lhes toma várias horas por dia. Também as mães dão uma ajuda, sendo assim um trabalho no feminino.
A máquina que cria tempo chegou a esta aldeia em novembro de 2014, depois de o “Homem Grande” ter feito uma cerimónia animista no mato, em que questionou a natureza sobre a oportunidade desta doação da ONGD Afectos com Letras, com o cofinanciamento da Embaixada da Austrália em Portugal. Dos seus rituais saiu a sentença da nossa boa fé e da bondade da nossa oferta no sentido de melhorar a qualidade de vida da população.
No dia da entrega houve festa rija. Primeiro fomos recebidos pelos homens da aldeia, toda engalanada para nos acolher. A máquina instalada num telheiro que mandámos construir, pintada de um amarelo forte, irradiava luz que se refletia nos olhos de cada um deles. Só mais tarde apareceram as mulheres. A dançar e a cantar numa euforia contagiante. Também elas tinham estado a fazer uma das suas cerimónias animistas para saber se nos podiam receber, assim como à máquina nova.
Com tudo esclarecido pelos espíritos da natureza era tempo de por o bem terreno ali plantado e mostrar o que ele valia. Quando a máquina começou a trabalhar às mãos do técnico que ali deixamos uns dias a dar formação, e o saco de arroz nela despejado começou a aparecer de um lado num branco celestial, enquanto o farelo seguia para o outro, é impossível descrever a alegria presenciada. as mulheres agarravam nos bagos de arroz com o cuidado e a curiosidade de quem pega uma pepita de ouro. A festa continuou tarde fora. Houve frango, cabrito, porco e muitas danças manjacas regadas com vinho de palma. Foi aquele o dia em que as mulheres e as meninas viram pela primeira vez a maquina que cria tempo. Que cria tempo de ir à escola e de brincar às meninas; que cria tempo para as mães se dedicarem a outras atividades agrícolas geradoras de rendimento ou, pelo menos, capazes de assegurar diversidade alimentar e de se dedicarem aos seus filhos ou às lides domésticas.
Depois de Barambe, uma outra aldeia recebeu uma máquina destas em 2015 e, em 2016, a Ilha de Jeta foi contemplada por esta mágica máquina de gerar tempo e qualidade de vida. Neste caso, com a particularidade de ser a única disponível em toda a ilha e que evita deslocações perigosas em piroga até à parte continental, com sacos de arroz às costas para usso da máquina existente em Caió, e que muitas vezes deixava as mulheres e as meninas do lado de cá a passar a noite ao relento, quando as traiçoeiras marés impediam os barcos de regressar com elas a casa.
Quando voltámos à aldeia de Barambe, uns meses depois, diziam-nos os homens com piada que a escola agora é pequena para tanta criança, precisam de uma maior. E como as mulheres têm menos trabalho, dedicam-se a fazer penteados e tranças no cabelo. Estão mais bonitas agora, acham eles. E eu também! Esta máquina descascadora de arroz não criou só tempo. Criou arroz com maior valor nutricional, qualidade de vida e perspetiva de um futuro melhor para as meninas da aldeia. E isso é mesmo o mais importante.
Podem conhecer esta máquina criadora de tempo aqui: