Leio, de novo, a frase, tida como lapidar: “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maior parte das pessoas apenas existe.” E, uma vez mais atónita, com tais sentenças pseudo-sábias, questiono: quem assim escreve e quem, de igual modo, concorda, terá noção do que afirma?
Afinal, viver é o fenómeno comum a qualquer ser biológico, dada a noção de vida (ou bios) que implica o bater do coração, o respirar, o ser capaz de ver, de ouvir, de sentir, enfim, estando, por essa razão, amplamente disseminado. Vivem, portanto, todos os seres animais e ainda as plantas e mesmo os minerais – cada uma destas classes de seres à sua específica maneira.
Nesta ordem de ideias, se nos referirmos à espécie humana, em exclusivo, às pessoas, tal como se lê na frase, todos vivem, independentemente do género, da idade, da classe sócio – económica, do padrão adoptado ou escolhido, da ascendência familiar ou geracional, etc.
A existência é um acontecimento especificamente humano, em teoria, e resulta, em primeiro lugar, da tomada de consciência : de si e do mundo em torno de si. Estou inteiramente convicta de que, a consciência preliminar do indivíduo humano, refere – se ao “fora de si”, ao mundo envolvente como circunstância, e só depois a si mesmo, num olhar para dentro, logo que o crescimento permite a separação do único, em relação ao todo.
Esta reviravolta do eu para os outros eus, do eu para dentro do próprio eu, do eu, isolado, para o eu, com os outros, é a existência ou “ex-sistere” ( do latim), implicando, por essa razão, uma saída do mero trabalho orgânico, e logo biológico, para uma extensão ampliada da bios capaz de abranger o mundo e os outros, capaz de alargar – se, pela imaginação, a outros mundos.
Nesta perspectiva, “ex-sistere” ou existir é o modo específico e mais elevado que o homem encontra em si para se enunciar na diferença. De facto, tudo o que se agita à face da terra, vive, movimenta – se, realiza, instintivamente, as funções adequadas à espécie: sobrevive, portanto. Apenas uma pequena parte dessa plêiade de seres animados, externamente ou no mais recôndito, tão recôndito que nem damos conta, existe, efectivamente. E fá – lo, na medida em que conhece a alteridade, passando do eu ao si, numa dinâmica que, ao que sabemos, é intrinsecamente humana.
Ora, entre os humanos, há muitos níveis no patamar da existência e alguns deles são tão primários, tão próximos da incipiente bios que os formou enquanto síntese de células matriciais, que muito pouco os distingue de qualquer outro vivente. Outros, porém, superam, superando – se, esse nível básico identificador do impulso vital e assumem -se como existentes: “ex-sistentes” e logo saídos de si numa extensa amplidão da consciência e do pensamento. Tenho que concluir, portanto, exactamente o oposto do que a apregoada citação defende.
Viver é uma ocupação vulgar e implica a luta pela sobrevivência que ocorre aquando da saída do útero (e talvez antes) e se prolonga até ao suspiro final. Os níveis de consciência, na alteridade e no “de si para si mesmo”, podem ser tão básicos durante toda uma vida humana que em muito pouco lograremos encontrar nela diferenças de vulto, face aos restantes viventes. E, pelo contrário, essa diferença específica que tem dado aos homens a superioridade relativamente aos restantes seres da Terra, tem sido a tal ponto desvirtuada que nem todo o humano deve ser considerado existente (de ex-sistere ).
Desse modo, corrijo a frase lapidar que hoje deu o mote à minha crónica e que tanto me confunde, por saber que ela resulta da ignorância quanto à dicotomia dos dois verbos, viver e existir, e, decerto ainda, a práticas de viver de onde o “ex-sistere” foi retirado ou onde nunca esteve, e escrevo:
“Existir é a coisa mais rara do mundo. A maior parte das pessoas apenas vive.”