I
Eram os primeiros dias do seu inverno, mas o calor ao meio do dia, ainda maltratava os corpos enfraquecidos.
Hoje, o sol manhoso estava a rasgar o horizonte e a bruma da noite afrontava a manhã estranha e semifria, provocada pelos chuviscos da noite. A vidraça oca do quarto jazia cerrada; do bueiro, brotava uma amainada fumaça branca que o suave vento forçosamente misturava com a bruma; os periquitos saltitavam nos cafeeiros desnudados de flor, um papa-lagarta cantarolava no peitoril da vidraça e o gato esperava ansiosamente pelo petisco da manhã. Borbulhavam modestamente partículas de água na chaleira suja – provocada pela brasa da lareira – e de metal. Pão quente, compotas, bombons de chocolates em forma de coração e um ramo de alpinias e celócias decoravam minuciosamente a mesa de madeira de carvalho. Espontaneamente alguém declarava apegos enquanto preparava o festim matinal.
“Delicadamente atravesso o teu corpo,
Com aroma de café e chocolate,
Os teus suspiros adentram a minha pele
Suave e arrepiada como o brilho do quilate.”
Cheirou imediatamente a café, assim que, um punhado de grão foi moído, num rápido e ruidoso movimento de máquina.
Estendido na cama estava um corpo esbelto, com um salpicado de pelos no peito, que permanecia num sono, enquanto era mirado amorosamente por outro corpo, que estava profundamente decidido a acordá-lo. Suavemente sussurrou-lhe ao ouvido:
“Amor… Amor…”
Nunca, um acordar tinha sido tão bom.
Trocaram um beijo.
“Amo-te.” – Disse o corpo que estava estendido na cama.
A casa de banho estava completamente abraçada numa fumaça provocada pela água quente, aquecida no cilindro; um aroma natural de cheiros envolveu aquele pequeno espaço, agora conquistado por um só corpo. Deslizou a sua mão direita no espelho embaciado e sorriu para a sua imagem elucubrada. Enrolou a toalha à cintura, mexeu o creme de espuma de barbear no recipiente com a ajuda do pincel; colocou sob as maças do rosto uma noz de espuma e espalhou pela sua cara e pescoço, o suficiente para esconder a sua barba negra e grossa, ocultando a maçã-de-adão; e deslizou a lâmina. Vestiu-se e desceu até a cozinha.
II
Já não havia apegos representados. Agora, havia apenas um único corpo angustiado, seminu, naquela casa oca. O fogo tinha queimado a madeira e transformara-se em borralha durante a noite. Não havia cheiro a café pela casa, como em todas as manhãs, nem chocolates; as flores de outrora estavam secas, contaminadas sob a mesa velha. Da vidraça, observou os jardins de cafeeiros, que estavam em flores e repletos de café, o sol começava a aquecer o dia, apenas a única semelhança. Enquanto fora daquelas quatro paredes tudo era feliz, dentro delas, a angústia governava o corpo dele, a mente deixava-se governar. Tudo aquilo era um sonho. Uma passagem real da sua vida. Um sonho que o acompanhava desde o seu último e único amor, que acabara num passado tão presente, ainda.
III
A vida ensinou-lhe tantas coisas naqueles dias de solidão, depois daquela partida inesperada. Aprendeu que nem todos os amores são plantados em jardins, muito menos, em jardins de café, com a cor vermelha a transbordar na tela verde e branca. Que o amor não é para ser vivido como uma vitória, mas sim como uma conquista. E há conquistas que não passam disso, de uma simples conquista com tanto amor (que diferença fará uma vitória no amor?).
Ele amou. Duvidou. Chorou. Aos poucos foi conquistando outro coração. Viveu cada dia com esperança de conquistá-lo mais, e nunca lhe escondeu o medo de falhar. Ele amou. Duvidou que era capaz, e nos nãos onde fracassou, chorou, mas nunca deixou de amar. E todo aquele aroma que lhes entrou pela vida, desapareceu, aos poucos.
Ele ainda ama, mas não dúvida que já perdeu, depois de viver uma grande conquista de amor. Até o tempo lhe rouba os cheiros, as lágrimas que não lhe pertencem, mas que dele brotam, as memórias – apenas ficou, uma última carta de despedida –, que o tempo tenta destruir aos poucos, com as tantas dobras feitas, com as lágrimas que vão caindo sob ela, pela saudade que existe; de olhos fechados ele já lê aquelas palavras minuciosamente, como se de um tesouro raríssimo se tratasse, mas aquela carta, é uma vida, mesmo sendo uma despedida, uma despedida que ele próprio cunhou. Foi uma vida, de dois corpos, de duas almas que se amaram. Agora de que serve ter uma carta com lembrança que chegam a matar…
“3 de Fevereiro
A ti,
Durante muito tempo, o meu erro de te amar, levou-me a matar o meu próprio amor. Neste amor, cresceram-lhe culpas e o medo dos medos, de não voltar a amar. Enquanto espero para amar novamente, há em mim uma melancolia, tão própria, tão viva, tão de ti. Sabes que eu ainda te amo e esta melancolia faz-me regressar sempre a ti. Porquê? Já não te vejo; já não te toco, já não te beijo há tanto tempo, e ainda és toda a minha memória, de um passado tão presente. E este amor, não me deixa avançar, prendi-me aqui, no mesmo sítio de sempre, onde me olhaste pela primeira vez e me disseste que me amavas. Porquê tudo isso, se foste tu que destruíste tudo que construíste em mim? Agora, apenas sou tempo sem progresso. Sou amor sem corpos. Sou tão nada de mim. Foi assim que me deixaste quando partiste.
Quero ir, sem ti, sem utopias, sem vida… quero voltar a nascer e a aprender a amar alguém. Quero tanto ser feliz. Não quero que sejas uma metáfora, muito menos um segredo que todos sabem, quero que sejas o nada que és, e já foste tanto em mim e de mim…
Amo-te, foi a forma que sempre me despedi de ti.”
Era o que ele esperava. Uma despedida possível para um sempre. O tempo antecipa-se, a dor duplica-se e o amor culpa-o de algumas coisas ou de todas as coisas. A vida é imparável. O amor é servido numa chávena de café, com ou sem açúcar e a vida é um chocolate com aroma a pimenta.
IV
“Eu sei que muitas vezes as minhas palavras foram sujas, e mesmo assim, encontraste nelas uma beleza suspensa, até que chegou um dia e partiste.
Confesso que fujo de me revelar, como realmente sou. Tenho medo. Muito medo. Como se me culpassem do que sou. Sempre escolhi a segurança e não onde fosse feliz.
Não importa eu ser feliz. Importa tu estares feliz onde tiveres. Talvez tu fosses a iluminação – que tanto desejei – na minha escuridão de decisões. Mas… tudo acabou.
Não importa que sejas ausente, que a saudade fique. Porém, tenho a certeza que entre a multidão te voltarei a encontrar…”