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TCHON DI PÉPEL

A Tabanca de Quilum é uma aldeia Como centenas de outras na Guiné-bissau. Fica ao fim de uma picada daquelas que a isola de tudo e de todos em tempo de chuvas. Escondida entre bolanhas de arroz, plantações de mancarra (amendoim) e embondeiros que dão cabaceiras para fazer um sumo delicioso, apesar de o servirem exageradamente doce.
Tínhamos combinado chegar pelas 9:30 e, vítimas da nossa pontualidade, não tínhamos quase ninguém à nossa espera. Só uns homens aqui e ali a coser os tradicionais panos de pente e o Régulo, ainda sem as vestes com que mais tarde nos recebeu, que se encontrava no centro da aldeia, à sombra de um poilão, a comer o mata bicho. Uma tigela com arroz que entretanto passou a uma criança que ali se sentou perto dele.
Saciado, foi até casa enrolar no corpo o manto que lhe dá estatuto e voltou para junto de nós. Entretanto chegou uma senhora com um balde com água começou a despejar num latão que estava junto de nós num cerimonial de dar de beber aos espíritos. Passado uns minutos começaram a chegar calmamente os habitantes com o seu banquinho na cabeça. Explicou o Régulo que depois dos afazeres da manhã, que começam por ali com os primeiros raios de sol, tinham ido a casa arranjar-se para nos receber. E, honra lhe seja feita, vinham todos impecavelmente arranjados, não há dúvida. Aos poucos, compôs-se à nossa frente um quadro cirúrgicamente distribuído em meia lua e de uma harmonia visual extrema. Com o Regulo sentado do nosso lado, compôs-se um quadro humano à nossa frente por uma ordem natural que não levantava a mínima dúvida entre eles. À nossa esquerda um grupo de homens de meia idade, os conselheiros do Régulo, de Quilum mas também das tabancas vizinhas; em frente a nós, os mais velhos da tabanca (o homem grande e a mulher grande) sentados num banco junto do tronco; atrás deles os rapazes da aldeia, com vestes mais ocidentalizadas e que ficaram o tempo todo de pé; direita as mulheres, todas no seu banquinho de madeira sussuravam entre si enquanto nos inundavam na explosão de cores que saía das suas roupas. Mais afastadas, na soleira de uma das casas, as meninas tomavam conta dos mais bebés e pareciam importar-se pouco com a nossa presença. Finalmente atrás de nós, sentadas numas cadeiras mais robustas, duas mulheres envolvidas num pano vermelho, as balobeiras (sacerdotizas) da Tabanca.

Ainda não o referi, mas estou a descrever uma aldeia Papel, em plena região de Biombo. Esta etnia, originária da Guiné Bissau é animista por natureza e tem um modelo social muito estruturado e organizado. O Régulo é tradicionalmente a entidade máxima que chega ao posto por descendência e exerce a autoridade máxima em matéria de administração territorial, de arbitragem de conflitos entre os habitantes da aldeia ou mesmo em matérias judiciais ou sociais.
Os mais velhos têm também um papel importante na tomada de decisões e, nesta circunstância, aproveitaram a nossa presença para mostrar que esse papel tradiconal se mantém intacto. A mulher grande interveio num discurso inflamado para se queixar da política e dos políticos do país, que lhes aparecem ciclicamente a pedir votos em troca de prebendas que nunca se concretizam. Os conselheiros anuíam com a cabeça e a ala das mulheres aplaudiu entusiasticamente esta intervenção. Mas nós não vínhamos com mensagens políticas nem promessas, mas sim com alivio para as meninas e mulheres da aldeia, ao dar-lhes uma máquina descascadora de arroz para uso da comunidade. Cientes disso estavam ali de coração aberto para nos acolher.
O Régulo, quase no final do nosso encontro, partilhou a preocupação por ter apenas um pano de pente para nos ofertar pois éramos três. Dissemos-lhe não haver problema, que nos sentíamos muito honradas com a oferta de um pano mas ele prontamente retorquiu com humor refinado que com mulheres não se brinca e já se sabe como são umas com as outras. Achava ele que iríamos brigar pelo pano e foi ligeirinho a casa desencantar mais dois. Lá deve ter experiência em dirimir conflitos femininos na aldeia, tendo em conta a convicção com que o disse.
A reunião acabou e a comunidade lá começou a desmobilizar. Partiram primeiro os das aldeias vizinhas, depois os rapazes, os homens, as mulheres com os seus banquinhos na cabeça e por fim os mais velhos.
Ficámos ali mais um pouco, em amena cavaqueira com quem nos deu a conhecer aquele fantástico paraíso do Chão de Papel, onde cada momento e cada ação nos transmitiram a imagem um modelo sociológico de harmonia plena.
Há comunidades e etnias perdidas por esse mundo fora que ainda nos permitem acreditar que há modelos organizacionais quase perfeitos. Este foi um daqueles dias em que voltei para casa quase a acreditar que sim.

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