A língua é, sem qualquer dúvida, o mais relevante factor da identidade de um povo. É a sua pátria, a sua mátria, o refúgio último da sua alma colectiva. O seu Camões, o seu Pessoa, a sua Amália. Ainda que pelo mundo em pedaços repartida.
Acontece que o sangue que dá vida a um povo, a sua língua, que é a sua forma de expressão mas também de comunicação, de afecto, de ligação umbilical, é a coisa mais destratada que existe neste país.
O cidadão comum não tem o mínimo cuidado com a língua, porque não tem formação académica para o efeito e porque a maioria é ignorante das suas regras e virtualidades. Não tem culpa, porque a escolaridade mínima não dá para mais mas maltrata a língua.
Mais lamentável é quando a língua é açoitada por quem tinha estrita obrigação de ser o guardião maior da sua defesa: a comunicação social, os jornalistas, profissionais de diversas áreas e até professores cuja formação deficiente os impede de construir frases com princípio, meio e fim, como soe dizer-se, não isentas de erros ortográficos.
Quem não ama a língua, não a pode defender devidamente. Ponto final. E um dos estratagemas que se utiliza nos dias de hoje, quando não se sabe manejar a ortografia, por exemplo, é dizer-se que se está confundido com o acordo ortográfico ou que se escreve segundo o polémico e infeliz novo acordo, já quase com 30 anos e que ainda não se conseguiu impor nos Países de Língua Oficial Portuguesa, porque nunca teve pés para andar, de tão mal amanhado que foi desde o início.
Genericamente, fala-se mal a língua e escreve-se pior. E então nas redes sociais, Deus meu, é um descalabro, uma lixeira a céu aberto no que respeita ao tratamento da nossa identidade linguística!… Frases pessimamente construídas, ausência de acentuação, erros gramaticais em barda… E já nem falamos no manco linguajar de tantos jovens, nas suas mensagens telefónicas e na Internet, que são um constante atropelo às regras que ninguém conhece.
E para agravar a situação, os portugueses comprazem-se em armar-se aos estrangeirismos, obsessivamente, em especial aos anglicismos… Como se Portugal fosse a Inglaterra, que definitivamente coloniza muitos sectores da vida social neste país, do comércio à economia, da cultura ao dia a dia.
Ele é o Black Friday (sexta-feira negra), o CEO (Chief Executive Officer – director geral), o streaming (transmissão), o reality show (o espectáculo da realidade), as fake news (notícias falsas), a start-up (empresa emergente). E mais o spa, o resort, o vintage, as sunset partis, o check-in, o voucher, a guest house, o jacuzzi, o cocktail, o look, o gourmet, o chef…
No fim de todos estes atentados, pouco resta para um correcto uso da língua, que deveríamos amar, salvaguardar e defender.
Abusamos das palavras e expressões estrangeiras que bem poderíamos substituir pelas traduções portuguesas. A comunicação social, então, excede-se em demasia, devendo coibir-se de tanto barbarismo… Impõe-se uma entidade reguladora para a defesa da língua, já que ela não se consegue defender sozinha. E não se venha com a lengalenga de que estamos num mundo global, que não importa defender a língua portuguesa… Que eu saiba ainda somos portugueses, a língua é a nossa e não há nenhum acordo no sentido de adoptarmos o inglês para a conversação corrente ou para os negócios. Sejamos razoáveis e exijamos o impossível, como no Maio de 1968, neste caso, em defensa do que nos é mais caro e sagrado, o nosso modo de expressão e comunicação.
Porque é a língua que nos distingue, nos singulariza, enquanto povo e enquanto indivíduos.
E se a muitos isso não inquieta, a mim causa-me profunda comichão cerebral!