Ontem dispersei um grão de areia pelos ares ensonados e recolhi-o, feito gota de orvalho.
Na ponta dos dedos, húmido e esclarecedor, deslizou francamente na pele encrespada e durante um segundo percebi que todos haviam partido numa viagem por mares e desertos e que nas sombras de um pôr-do-sol violento e carnal (com resquícios de amargura) flutuavam as asas das cegonhas, negras e rubras, em tontura de inverno.
Estranhei a paisagem do interior do meu sonho, estranhei a figura submersa na luz crepuscular que outrora me acenara prodígios e agora se sustinha, hirta, numa despedida sem voz e sem sorriso.
Entrei, por fim, na cabana daquele pescador que há pouco lançara as redes; e vi-o, quando ele estremeceu, embrulhado no capote dos frios e do sal.
Mas logo me sorriu, por entre a névoa dos olhos azulados tecidos num capricho de rugas gretadas e me apontou o banco rústico que conservava vazio, defronte de si.
(Que havia de fazer senão sentar-me e partilhar com ele a refeição minguada de peixe rescendente a algas marinhas e pão escuro e acre da prateleira das privações?)
Não houve entre nós o murmúrio de qualquer palavra, apenas o sorriso por onde perpassavam vestígios de ondas e sobressaltos de marés e também um subtil ardor de sal e maresia incrustado nas palmas das mãos.
(Levantei-me, por fim, com um leve gosto a sardinha no travo da língua e um calor profundo no coração amansado, como se ali houvessem fogos insuspeitos em vez dos frios esperados da cabana feita de tábuas carcomidas)
O grão de areia, feito gota transparente, aguardava-me no umbral, e eu segui-o até à praia e mergulhei com ele no esplendor pacífico de uma maré sem ondas, até longe.
Deixei-o depositar-me, por fim, na ilha onde me esperava o canto da sereia, que não vi nem ouvi, porque logo me penetrou a força de um olvido secreto e profundo e as pálpebras esconderam a turgidez de um sono sem sonhos ou demências.
(E então eu soube que chegara a casa)