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Cultura, Literatura e Filosofia

AMIZADE HUMANA, ESSE LOGRO

Quando penso em amizade e amigos fico, invariavelmente,  aturdida. E , invariavelmente também,  presa que sou ( sem nenhum desgosto ) da minha formação filosófica,  evoco o filósofo Kant.
São dele os imperativos categóricos ou mandamentos da moral formal. Imperativos categóricos porque têm valor em si mesmos , não pressupondo nenhuma condição; ética  formal porque não está dependente de qualquer matéria,  não deve cumprir – se em ordem à obtenção desta ou daquela recompensa,  mas tão somente porque radica de um compromisso racional do sujeito consigo mesmo.
O imperativo categórico apresenta três formulações, cada uma delas ordenando relativamente a sectores específicos da acção humana. Aquela que hoje me importa – e uma vez que falarei de amizade – é assim:
“Age de tal maneira que uses a humanidade, quer na tua pessoa,  quer na pessoa de outrem, sempre e exclusivamente como um fim e nunca como um meio.”
O imperativo é prático, pois ordena para a acção e, por isso, começa com uma ordem, lançada pelo verbo agir. Efectivamente,  enquanto humanos e logo sociais,  somos compelidos a contínuos actos de interacção que levamos a cabo, usando – nos a nós mesmos, como parte da dinâmica, e usando os outros como elementos imprescindíveis da troca.  Nada de novo,  portanto.
A questão surge, decerto, logo que pensamos nos motivos que nos levam a agir,  usando – nos e usando os outros:  porque este verbo “usar” pode engendrar equívocos.
Devo usar – me e usar os outros?  Sim, não existe outro modo de estabelecer relações;  mas, eu, que represento um dos pólos da dicotomia,  devo entrar nela como um fim e nunca como um meio para atingir outro fim. Ao mesmo tempo, é necessário que eu veja no outro, igualmente, um fim em si mesmo e não um meio para que eu alcance os meus fins.
Na prática, e  tendo em vista o imperativo kantiano,  é contrário à moral usar os meus predicados,  por exemplo, para conquistar a atenção de outrem ou usar os benefícios do outro para deles me servir.
Vejo então que na esmagadora maioria dos casos,  tudo o que corre no mundo sob o nome de amizade (ou de amor ) não passa de negócio e logo de comércio. Raramente os amigos estão com os amigos pelo bem deles, somente; raramente os visitam ou lhes telefonam para saberem, simplesmente, se estão de saúde  ou se terão vontade de sair ou de falar. A maior parte das vezes os amigos encontram – se para satisfazer necessidades e desejos que podem nada ter a ver com as necessidades e os desejos dos outros.  Cada um tem em mente o seu próprio interesse e muitas vezes o outro representa apenas o pretexto para a sua exclusiva satisfação.
Podem objectar – me que estas situações são normais e que as relações humanas têm por base o interesse, a necessidade,  o prazer. De facto, procuramos aqueles que nos fazem sentir bem e afastamos os que, de um modo ou de outro, nos são incómodos. Ligamo-nos àqueles que consideramos semelhantes a nós e pomos de lado todos os que nos parecem estranhos.
Se nos aproximamos de quem nos agrada, apenas pelo agrado, servimo – nos dele como meio para satisfazer a nossa necessidade de deleite.  Pode acontecer que, em simultâneo,  o outro veja em nós uma ocasião de experimentar prazer e, aparentemente, retribui o nosso enlevo. Julgando sermos os agentes de um acto de amizade ou de amor, estamos simplesmente  a ser os meios para a satisfação do outro…e reciprocamente.
Tudo poderia correr bem, nesta ilusão de dádiva correspondida, se não surgisse, amiúde,  o sintoma do cansaço ou da falta de interesse de uma das partes. Faz – se luz ; e ele percebe que, afinal,  o outro pouco significa quando já não consegue dar prazer com a sua companhia. Quer afastar – se,  decerto procurar outra fonte de satisfação para os seus anseios. E aquele que foi abandonado dá -se conta da perda, para si, e percebe que pactuou somente num jogo narcisista.
Exactamente, narcisismo.  O que queremos, acima de tudo,  são espelhos,  lagos transparentes que apenas nos reflectem, mesmo que esse reflexo possa ter os contornos do corpo de outrem.
Perguntar-me-ão: como ter esta vocação tão humana de buscar nos outros exclusivamente o que nos agrada, engrandece, eleva e, em simultâneo, aceitarmos ser usados,  por conta dos nossos méritos, e, ainda assim, cumprir a norma de acção kantiana?  Como agir sempre usando o outro e a mim próprio como um fim, sem cedências,  sem interesses, estabelecendo a suprema relação de amor ou de amizade, no plano ético que ordena o desprendimento absoluto?
Decerto este verdadeiro altruísmo que é,  ou deveria ser, o suporte de qualquer relação humana, constitui uma raridade;  e é por isso que fico aturdida quando observo aquilo a que é comum chamar -se de amizade,  de amor. Invariavelmente detecto todos os sinais do interesse e da intenção de uso : amo-o porque ele é bonito, encantador, rico, e apraz – me usufruir de tais benefícios – estou, assim, a servir – me dele como meio para alcançar fins que são do meu interesse. E eu, que assim me sirvo de outrem, estou a usar – me, como meio, deste modo,  num comércio comigo mesmo.
A propósito,  evoco Albert Camus que assim escreve, no seu livro, A Queda:
«Nunca teve uma súbita necessidade de simpatia, de auxílio, de amizade? Sim, com certeza. Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente, «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente do Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de lhe fazer frente. Sobretudo, não acredite que os seus amigos lhe telefonarão todas as noites, como deviam, para saber se não é precisamente essa a noite em que decidiu suicidar-se, ou, mais simplesmente, se não tem necessidade de companhia, se não está com vontade de sair. Oh, não, se telefonarem, esteja descansado, será na noite em que já não está só e em que a vida é bela. Quanto ao suicídio, a isso de preferência o empurrariam, em virtude dos deveres para consigo próprio, segundo eles. Deus nos livre, caro senhor, de sermos colocados muito alto pelos nossos amigos! Quanto àqueles cuja função é amar-nos, quero dizer, os pais, os parentes por afinidade (que expressão esta!), isso é outra cantiga. Têm a palavra necessária, sim, é verdade que a têm, mas é mais a palavra-bala; telefonam como quem dispara uma carabina. E acertam no alvo. »
Sempre que oiço pronunciar a palavra amizade (ou quando a leio)penso inevitavelmente neste texto de Camus. E cito-o. Com muita frequência. E cito também este, de Camus, ainda de A Queda:
«Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode. Acaso, no fim de contas, não o quererá bastante? Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós durante a vida inteira. Mas sabe porque somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo de água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, é o morto de fresco que nós amamos nos nossos amigos, o morto doloroso, a nossa emoção, enfim, nós próprios.»
…E, depois de citar, espero as reacções dos possíveis ouvintes (ou  leitores) e percebo o constrangimento, o silêncio, o  baixar de olhos (as reticências, no discurso escrito, a página vazia, as palavras vagas…)
Sei então que não há amizade, embora a palavra seja usada e abusada por todos, sei que estamos sós, absurdamente sós num mundo atulhado de gente… e sabem porque o sei? É que quando estamos na prisão e dormimos na tábua dura, ninguém se deita em casa, no chão, por nós!
Mas, quando eu digo estas palavras, citando ainda Camus, olham-me com espanto agressivo e aí falam, para dizer: “Ora, de que serve isso  se o amigo está preso e, dormirmos ou não no chão, não o libertará da prisão???”
Ah, esta lógica do comodismo, esta lógica cruel do nosso conforto e do direito que a ele temos, mesmo que o nosso amigo esteja em sofrimento!  «A amizade é distraída, ou pelo menos impotente; o que  ela quer não pode.» É isso, está claro, primeiro estamos nós e os nossos confortozinhos pessoais, depois estamos nós e os nossos problemazinhos pessoais e, quando podemos libertar-nos um pouco de nós próprios, já é tarde: porque entretanto o amigo, por quem não nos deitámos no chão quando esteve na prisão, a quem não telefonámos todas as noites, só para lhe perguntarmos se estava bem, se não era exactamente naquele dia que ele pretendia suicidar-se, saiu da prisão e reencontrou o seu caminho ou deu um tiro na cabeça e já não precisa de ninguém! E nós, nem sequer admitimos que fomos responsáveis pela dureza da tarimba do prisioneiro, pela dor solitária do suicida. Mas fomos!!!
Por isso, sejamos prudentes ao falarmos de amizade, quando o máximo de que somos capazes é de uma simpatia ténue que em nada nos compromete, não reclamemos muito, dizendo sentir amizade, quando o máximo de que somos capazes é de um sorriso ténue e de um virar de costas logo que a falta de interesse nos desobriga.
(Escrevo na primeira pessoa do plural para, deste modo,  ceder à humana irmanação que nos coloca, a todos,  numa desesperante sintonia. )

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