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Cultura, Literatura e Filosofia

O ADAMASTOR DE BORBA – CRÓNICA DE UM POVO (IRRE)QUIETO

“Adamastor, nome conferido a um dos gigantes, filhos de Gaia (Terra) que se rebelaram contra Zeus. Fulminados por este, ficaram dispersos e reduzidos a promontórios, ilhas, fraguedos, rochedos e penhascos”

O dia nasceu tímido, o povo acordou e assumiu mecanicamente aquela rotina diária de quem vive com o estranho propósito de imprimir hábitos e objectivos que o distanciam cada vez mais dos genuínos valores pelos quais se deveria reger a humanidade.

No seu promontório o monstro jaz sereno e imperturbável, domesticado pela mão do Homem que o sonhou e tão grotescamente talhou; à medida da sua notória e excessiva cobiça.

Borba, quatro anos atrás.

Sem piedade, esventrando vorazmente a terra com a mesma prudência com que um felino esfaimado crava as garras e devora a sua presa após um abusivo jejum; arranharam-na com unhas de aço, serrando, fendendo e extirpando a sua alva matriz.

A natureza já gemia e clamava por atenção, o seu queixume abafado pelo trinar da caixa registadora somando obscenidades.

Hoje, os veios frios, fraturados e abatidos da pedra desmoronada refletem timidamente os corações das famílias, tragicamente menores, irremediavelmente estilhaçadas; numa dor tão profunda quanto as feridas que esvisceram o solo e que mais ninguém alcança.

A algidez da rocha submersa e há muito abandonada contrasta com as têmporas ruborizadas e palpitantes de quem sente a indignação por nada ter sido feito para prevenir a tragédia.

Elevam-se vozes indagadoras, dedos acusadores, afirma-se que a estrada se tornara perigosa.

Perigosa?

Não fora com certeza a estrada a ganhar vida e trinchar os terrenos que a ladeiam tornando-a nesse frágil e instável fio condutor de almas destemidas e condenadas à fatalidade.

Criara-se um monstro, forjado pela mão fria e incauta do Homem.

Um cabo artificial, não de Boa Esperança enlevando a bravura e capacidade de superação dos navegadores portugueses que o ousavam cruzar; mas de sombrio intento, um cabo de ludibria ilusão e trapaça.

Nenhuma das almas que por ali seguia tranquilamente tinha sequer consciência da precariedade da estrada nem tão pouco do quanto vacilavam as suas vidas sempre que percorriam esta fina corda de plúmbeo agoiro.

A indignação cresceu enquanto ainda ecoava o ribombar e troante grito gutural do monstro que num ápice, desbocara anos de inépcia e engolira as nossas frágeis e prezadas vidas.

Sim, afirmo “nossas” pois o destino de cada português estará sempre solidariamente vinculado ao próximo.

Enquanto as águas ainda reviravam, a revolta esmoreceu, sedimentou no fundo dessa obscura e barrenta lagoa;  acamando no leito lamacento de um ímpeto esquecido.

Ficou o lúgubre silêncio e a ossatura fantasma, proscrita, aguardando na opacidade do seu corpo e sob a sombra do seu fragoso abraço, o adensar e materializar de um caminho de redescoberta.

O povo queixou-se, lastimou-se, murmurou e terminou num breve suspiro.

O símbolo de orgulho em terras alentejanas, denominado de Rotas Tons de Mármore, deu lugar à tormenta na tão famigerada odisseia turística lembrada por quem sonhou vencer a desertificação da vida e que este titã de pedra no seu passo decidido foi devorando.

Esvisceramos a natureza e, dessa opulenta fealdade, ainda conseguimos excentricamente extasiar o ridículo da obra.

Espelhamos na terra a vincada prova da astúcia e do sucesso económico do Homem, o naufrágio das mentes receosas e a transposição do abismo na passagem pelo cabo da destreza e do engenho, empreendendo novas rotas na conquista e união de um povo, docilmente ávido de oportunidade e esperança.

Adivinha-se esta tragédia com o mesmo destino das suas antecessoras, investigações inconclusivas, talvez alguns parcos arguidos mas com uma supressão total de culpados, um reflexo imediato em pedir peritagens e avaliações técnicas em todas as empresas do sector (como se esse procedimento não decorreria de um processo comum de licenciamento para operar na atividade), algum período de maior atenção mediática “para inglês ver” e caso o povo não arreda pé, um ícone para homenagear as vítimas e validar uma corrente continua de futuras neglicências em todo o espectro social e económico.

 A partir do 19 de novembro, 353 anos após a Batalha dos Montes Claros que deu origem ao Tratado de Lisboa de 1658; com a descoberta de mais um monstro adormecido, o povo irrequieto… rapidamente serenou e diluiu-se na antecipação da época festiva que se avizinhava.

Nota Literária: ADAMASTOR com Luís de Camões

Foi popularizado ao ser usado com verdadeira mestria pelo poeta português Luís de Camões, no Canto V da epopeia portuguesa Os Lusíadas, como o gigante do Cabo das Tormentas, que afundava as naus, e cuja figura se desfazia em lágrimas, que eram as águas salgadas que banhavam a confluência dos oceanos Atlântico e Índico. O episódio do Adamastor representa, assim, em figuração grandiosa e comovida, a sua oposição à audácia dos navegadores portugueses e a predição da história trágico-marítima que se lhe seguiria. 

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