No dia 15 de dezembro passado, ao abrir o meu «feed» de notícias do Facebook, deparei-me com um recorte de uma crónica do jornal Correio da Manhã sob o título «Faturar milhões e pagar tostões».
O colunista referia o trabalho da jornalista Joana Gorjão Henriques, publicado no jornal Público do dia 9 de dezembro, sobre a pobreza em Portugal, a partir de um caso relacionado com a pastelaria Pastéis de Belém e uma funcionária da secção da limpeza.
O «post» com o recorte da crónica do CM já tinha dezenas (senão centenas) de comentários negativos e até ofensivos à Antiga Confeitaria de Belém.
O colunista escreveu que esperava que o artigo tivesse sido desmentido no dia seguinte e como não foi, sem mais delongas, presumiu que era verídico.
Resumiu a história «a empresa dos Pastéis de Belém – que vende 20 mil pastéis por dia – paga o ordenado mínimo a uma funcionária sua com 18 anos de casa» e finaliza a afirmar que quando lhe apetecer um pastel de natas irá a todas as casas de Lisboa, menos aos Pastéis de Belém.
O certo é que a notícia estava errada.
Não foi desmentida no dia seguinte, mas sim 3 longos dias depois, quando a Antiga Confeitaria de Belém exerceu o direito de resposta no jornal Público.
Junto ao direito de resposta o jornal publicou um pedido de desculpas.
Aqui, é bem aplicada àquela máxima de que desculpas não se pedem, evitam-se.
E seriam facilmente evitadas se a jornalista responsável pelo artigo tivesse se dado ao trabalho de verificar os factos, de pedir o recibo de vencimento da trabalhadora e de ouvir todas as partes.
Durante esses 3 dias a matéria do Público, segunda de uma série de reportagens sobre pobreza, teve mais de 8 mil partilhas on-line.
Nas partilhas, os internautas enxovalharam os donos da tradicional pastelaria com comentários depreciativos e ameaças de boicote ao consumo dos seus produtos.
No dia 12 de dezembro foi publicado o desmentido da notícia.
No dia 17 de dezembro, 5 dias após a publicação da reposição da verdade, esta tinha pouco mais de mil partilhas contra as mais de 8 mil, em 3 dias, a «dizer mal» dos patrões que faturavam milhões.
Afinal, não são os donos dos Pastéis de Belém os responsáveis pela «pobreza» em que vive a sua funcionária.
Afinal, além de uma penhora judicial que impende sobre o seu salário, a funcionária, que segundo posterior «atualização» do Público recebe 620€ de remuneração base, ainda tem uma dedução mensal relativa a um adiantamento sobre salários futuros, que solicitou à sua entidade patronal.
Afinal, a funcionária que deu a cara ao segundo artigo da série sobre a pobreza sequer se enquadra no que as estatísticas definem como um trabalhador pobre.
Verificou-se, pela própria jornalista do Público, que a trabalhadora, apesar dos descontos da penhora e do adiantamento, recebeu em 2018 uma média mensal de 862,48€ de salário líquido.
Mas durante os 3 longos dias em que o artigo não foi desmentido, muito se publicou e falou sobre os “terríveis patrões».
Parece que além da pobreza económica que segundo o INE atinge 9,7% dos trabalhadores portugueses, existe uma enorme pobreza de espírito, que atinge um número ainda não analisado de cidadãos.
Dizer mal foi oito vezes mais aliciante do que dizer bem. Conclui-se que dizer mal vende mais notícia e a verdade parece pouco relevante.
Todos sabemos que a Constituição nos garante o direito de exprimir e divulgar livremente o nosso pensamento.
Tudo muito bonito e até romântico, mas o que se vê cada vez mais é que a informação se tornou uma mercadoria, sem preocupação com o controlo de qualidade.
No livro «Elementos do Jornalismo» publicado pela Porto Editora, Kovach e Rosenstiel criaram uma lista com nove itens fundamentais para o exercício da profissão de jornalista. O que me chamou a atenção foi o primeiro e o terceiro item, a obrigação da verdade e a disciplina da verificação.
O jornal não se preocupou em verificar a verdade. Não contactou a empresa visada para apurar os factos, não pediu o recibo de vencimento à trabalhadora, não apurou o que debitou. Com savoir-faire «vendeu» a sua mercadoria sem selo de qualidade.
O colunista do Correio da Manhã também se retratou no dia 18, declarando que como «jornalista, tinha a estrita obrigação de confirmar os factos junto da empresa em causa».
O que mais me preocupou nesse episódio da reportagem sobre a pobreza e os Pasteis de Belém, foi a reação agressiva da opinião pública nas redes sociais e a linha ténue entre a calúnia e o jornalismo de mercado.
É realmente inquietante a quantidade de «fake news» que podem prejudicar o bom nome e a faturação de uma empresa, bem como a vida de figuras públicas, e não só.
A velocidade com que as «desgraças» se espalham nas redes sociais exige que o jornalismo se revista de ética e compromisso social com a verdade e a imparcialidade, sob pena de ser o fim do jornalismo e o início da era da notícia falaciosa.
Nós, consumidores, detemos o poder de boicotar o mau jornalismo. E a sociedade demonstrou saber o poder que tem quando prometeu boicotar o consumo aos Pastéis.