É uma realidade o surpreendente aumento do número de casos de distúrbios mentais entre a população, a cada ano que passa, comprovado estatisticamente. Até há poucos anos não se falava em Parkinson, Alzheimer ou outras doenças degenerativas reveladas, inclusive, através da perda de memória, e eis que elas estão mais presentes do que nunca! Mas não nos desgastemos com a antecipação do problema, pois até neste aspeto aparece sempre alguém a dar umas dicas, que podem constituir-se uma boa ajuda. São exemplos as seguintes obras: “Já Não Me Lembro Do Que Esqueci – As mais recentes descobertas sobre a perda de memória”, de Sue Halpen, da Universidade de Oxford; “Cérebro – Manual do Utilizador”, de Sandra Aamodt, da Universidade de Yale e Sam Wang, da Universidade de Princeton; “Como Se Consegue Uma Memória Prodigiosa”, de Salvio Aliu; “Um Cérebro Sempre Jovem – Plano de 7 semanas para reforçar a memória”, de Tony Buzan. Este último, começa por escrever na introdução da sua obra: «É um erro completo partir do princípio de que o seu cérebro se deteriora automaticamente com a idade: existem dados científicos que o comprovam. A verdade é que tem de cuidar do seu cérebro, tal de como de qualquer outra parte do seu corpo. (…) Mantenha o seu cérebro ágil e em forma, e ele terá um desempenho tão bom quanto pretende. Conseguirá, de facto, ser capaz de o manter à prova de idade».
Reconheço que me fascina a temática da “Memória”, tendo-me levado a escrever um romance e a adaptá-lo para teatro. Não deixa de ser impressionante como nos esquecemos de algo ocorrido recentemente – que parece ser atirado definitivamente para o “arquivo morto”, talvez por não ser relevante –, e lembramo-nos, pormenorizadamente, de factos ocorridos há décadas, como se fossem hoje. Como estamos em plena época natalícia, relato um episódio, já com mais de sessenta anos, ocorrido em casa da minha avó materna.
Era uma criança e recordo, agora, o período que antecedia aquele Natal que nunca esqueci. Fui com a minha tia procurar musgo, que trouxe alguma areia do rio e umas palhas do quintal. Aos poucos, e com paciência, foi construído um simples e bonito presépio, com as figuras tradicionais de barro pintado. Quase em cima do grande acontecimento, foram os preparativos e a azáfama para aquela ceia de Natal, mas retive o que mais o mais gostava: filhós de abóbora e arroz doce – este, com muito sabor a limão e de cortar à faca –. Gostei de os ver confecionar e ansioso por meter à boca aquela doçaria ainda quente. A uma hora em que era suposto estar já na cama, ainda se conversava animadamente junto da lareira, todos sentados em pequenos bancos. Finalmente… hora da pequenada ir para a cama, mas primeiro colocar o sapatinho junto da lareira. Será que o Menino Jesus ia lá aquecer-se quando nos trouxesse as prendas? Noite mal dormida, sempre à espera de clarear o dia. Não resisti e, ainda de noite, com a casa em silêncio, saí do quarto e comecei a descer, às escuras, as velhas escadas de madeira para acesso ao rés-do-chão. Parecia demorar uma eternidade, pois não queria que os degraus rangessem à minha passagem. Vim a saber que tinha no meu sapatinho um guarda-chuva de chocolate e mais qualquer coisa, que não gostei. Fiquei tentado pelos seis lápis de cor que estavam junto de outro par de sapatinhos e fiz a troca. Lentamente, voltei a subir para o meu quarto e adormeci. Nessa manhã de Natal corri para a lareira e estava feliz com a carteirinha de cartolina com os seis lápis de cor. Alguém não gostou desta troca e obrigou-me a devolver os lápis a quem o Menino Jesus tinha generosamente oferecido. Ainda durante a manhã, encontrei-me com outro miúdo, vizinho com quem brincava habitualmente. Sentados no muro da eira, mostrava-lhe, sem grande entusiasmo, o que me tinha sido dado pelo Menino Jesus. Resposta dele: “Ai o sacana! E eu que fui à missa do galo e levei-lhe dois tostões! Nunca mais lhe dou nada!”. Quis saber o que tinha recebido do Menino Jesus e ele disse: “Broa e toucinho”.
Naquele Natal fiquei a saber mais uma quantas coisas, algumas dúvidas ainda permaneceram por mais uns tempos, e outra mantem-se até hoje; sim, porque havia, e há, coisas de difícil entendimento!
– O que fazia no presépio uma lavadeira, um pastor com um borrego às costas ou, mais difícil ainda, uns seis ou sete elementos de uma banda de música; mas gostava dos do tambor e da tuba, sem saber que o nome deste último instrumento era esse.
– Tinha a ideia – e até estava certa – que a farinha, o arroz, os ovos, a abóbora, a raspa de laranja, as cascas de limão e o azeite para fritar, era tudo caseiro, fruto do trabalho da família. O leite também sabia, pois íamos buscá-lo perto, com a leiteira, e ainda vinha ainda morno. Mas não fazia ideia de onde vinha a canela e o açúcar (se calhar era como a cola de pessegueiro…), mas que importância tinha isso, se sabia mesmo bem?
– Havia meninos que viviam com dificuldades e ficavam zangados com o Menino Jesus.
– Os pais sabem mais do que julgamos e adivinham as asneiras que fazemos.
– Não adianta a trapaça, pois somos desmascarados facilmente.
– Afinal, o Natal também pode trazer desilusões e chatices, se houver apego a algo.
Não havia Pai Natal, árvore de Natal, listas de pedidos e exigências, ou lâmpadas coloridas e intermitentes vindas da China. Comemorava-se, com simplicidade, o nascimento de Jesus de Nazaré, como figura central.
Mas por que será que dou relevo a este dia de Natal, que lembro com nitidez e o torna especial e, além do guarda-chuva de chocolate, não consigo lembrar-me o que foi a outra coisa que o Menino Jesus me deu? Por que será que, depois de tanto ler sobre a memória, ainda não encontrei resposta para a pergunta anterior? Por que será que agora, passados mais de sessenta anos, tenho tantas canetas coloridas de feltro, aguarelas, caixas de pastel a óleo e seco, tanto tubo de tintas de óleo e, acima de tudo, tantos lápis de cor?