Regina Sardoeira
Não, não vou analisar a Ode Triunfal de Álvaro de Campos. Podia fazê – lo; mas não quero.
Vou deter-me, somente, nas duas atitudes que suprimiram, primeiro, três versos na edição da Ática das Poesias de Álvaro de Campos , onde li o poema, e que substituiu esse conteúdo por …… tracinhos, e depois, no livro dos alunos de Português do 12° ano, da Porto Editora, onde a referida supressão é mantida.
Confesso que, conhecendo o carácter excepcional presente na obra do poeta, supunha serem os referidos sinais um recurso de estilo, um hiato propositado, uma pausa no ritmo veloz do poema, qualquer coisa , enfim! Mas nunca me passou pela cabeça que pudessem estar ali versos censurados! Havia , é claro, naquele tempo mais ou menos longínquo, uma polícia política, ou de costumes, ou sei lá de quê, que obrigava a que fossem riscados com lápis azul as partes ou o todo de uma obra tida como inconveniente.
Acontece que já lá vão mais de 40 anos desde que o acto censório foi abolido. E então questiono: por que razão os editores da Ática não publicaram o poema completo, depois do 25 de Abril? Falo assim porque o meu livro foi comprado nos anos 80 do século XX e lá estão os tracinhos a substituir os versos apagados! Distracção?! Imperdoável, declaro!
Não tendo lido todas as edições da obra de Fernando Pessoa, desconheço se todas terão os tracinhos. Imagino que não, uma vez que o poema foi incluído, na íntegra, no livro do professor !
E então junto as duas atitudes numa mesma ordem e classifico-as como sendo de uma extrema hipocrisia. Para começar.
Com efeito, truncar poesia, sob o pretexto de que é imoral e truncar somente umas palavras, deixando o resto, cuja imoralidade, se a há, surge equivalente, é, em si mesma, uma atitude imoral. A hipocrisia nasce da tentativa de apagar uma alusão explícita a actos condenáveis, deixando, contudo, intactos, todos os outros conteúdos, eles próprios nada aceitáveis – pela moral e pelos bons costumes. Como quem diz: “Tiremos estas frases e deixemos o resto: pode ser que os leitores não compreendam bem o que aqui é dito ou então que percam o fôlego, já que o poema é imenso!”
No contexto da censura do tempo do fascismo, cercear palavras de textos era usual, pelo que nem vejo razão para espanto.
Acontece que, no século XXI, mais de 100 anos depois de o poema ter sido escrito, os cortes permanecem! Sabe-se que os versos existem no poema original: o professor pode lê – los, mas os alunos não !
Caberá ao professor escolher os poemas de Fernando Pessoa e heterónimos a serem analisados. E se, conhecendo e gostando da Ode Triunfal, o professor decidir, precisamente, estudá-la nas aulas, desconhecendo a censura no livro dos alunos? Que fará quando chegar aos versos cortados?
Eu sei o que faria, caso tal me acontecesse.
Perante a lacuna, evidente no livro dos alunos, eu leria as frases suprimidas, usando o meu livro, e convidá – los -ia a completarem o poema nos seus manuais!
Vejamos. Os jovens do 12° ano tem 17/18 anos e vivem numa sociedade em que tudo o que há para saber lhes apareceu, já e há muito tempo, escancarado nas páginas da internet, absolutamente disponível num pequeno aparelho que trazem no bolso e levam para todo o lado. Eles próprios ficarão surpreendidos e escassamente compreenderão por que razão esses versos foram transformados em tabu.
Quanto à Ode Triunfal, agora que fui oportunamente relê-la, na íntegra (e em voz alta ) declaro a oportunidade, mais, a obrigatoriedade, de dissecar o poema até ao âmago para perceber algumas evidências.
A primeira é, sem dúvida, a densidade espantosa das imagens e a mestria com que foi traduzida em palavras. Mas creio que todos sabem, à saciedade, ter sido Fernando Pessoa (e heterónimos ) um poeta extraordinário. Se o não souberem ainda, não sei quando irão descobrir…
A segunda é o vigor com que o poeta invectiva as máquinas, o barulho, o progresso e tudo o que daí deriva e é feio e maléfico, ao mesmo tempo que faz de si mesmo ocasião de simbiose, e de agradável simbiose, com toda essa monstruosidade.
A terceira é o poder de dar às palavras o efeito de guinchos de máquinas, de ecos de buzinas, de gritos estrídulos de motores e também de odores fortíssimos e de miasmas e também de visões apocalípticas de um mundo em transe, todo um acervo sensorial sem limites, mesmo quando ainda não começou a recorrer às apóstrofes com que os anuncia.
A quarta é a admirável presciência do poeta que, mais de 100 anos antes de nós, já adivinhava o nosso tempo.
Por isso, corte-se, isso sim, o bafio de certas temáticas presentes no programa de Português do 12° ano e aprenda-se, de cor e a muitas vozes, a Ode Triunfal de Álvaro de Campos, o brilhante heterónimo do não menos brilhante Fernando Pessoa.