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REVISITAR GARCÍA MÁRQUEZ

Anabela Borges

“queres que te conte um conto, se não queres não conto, queres que te conte um conto?”

REVISITAR GARCÍA MÁRQUEZ

(Viagem à Colômbia, Cartagena das Índias, Verão de 2018)

O destino ditou: longa foi a insónia que se instalou. Os dias eram insuportavelmente longos e as noites um território de vigília e de sonhos mais reais que a própria realidade, porque as gentes passavam o dia todo a sonhar acordadas. A epidemia do esquecimento levava as pessoas a viverem os momentos da vida como contos, diziam, nesse estado de lucidez alucinada, o conto do “queres que te conte um conto, se não queres não conto, queres que te conte um conto?”, nesse círculo vicioso, como uma eternidade. E a saudade, essa eterna companheira? Era uma saudade estranha, que era a saudade de dormir, mesmo não havendo sono.

Cartagena das Índias – Colômbia

Foi o grosso destino que abriu até Macondo as entranhas da terra para a estrada de ferro. E o comboio amarelo chegou em alaridos, para espanto dos seus habitantes. A estranha estrada trouxe gentes e adornos e mobílias e todo o tipo de excentricidades. Instalou-se a companhia bananeira e a decadência, ali mesmo, nas barbas de Macondo. A banana “Chiquita” haveria de dar volta ao mundo, cem anos andaria a banana Chiquita a rodar o mundo? Aquilo, com os americanos, era uma imoralidade nunca vista. Faziam as poucas vergonhas à vista de todos, debaixo de qualquer árvore, nus e impudicos. Até que os trabalhadores, cheios de fome, decidiram reivindicar direitos numa greve, deu-se o massacre que acabou com aquilo tudo, até já não restar a miséria dos trabalhadores, até não restarem os luxos americanos: os trabalhadores foram todos mortos; os americanos foram embora. “Nos pântanos das ruas ficavam móveis despedaçados, esqueletos de animais cobertos de lírios coloridos”. A desglória e o infortúnio assolam Macondo, e por isso determinam os fados que haverá de chover sem parar durante quatro anos, onze meses e dois dias.

Triste fadário, pensou Gabo, mestre escritor, enquanto a obra se desenhava na sua cabeça e nos manuscritos do cigano Melquíades, numa língua estranha, este que mais parecia um boneco mecânico a escrever o ditado de tudo o que lhe era sussurrado. Gabo guardava uma sombria luz nos olhos, porque sabia que nada podia alterar à história que assim lhe aparecia já vivida, como se construída por si mesma, sozinha, em derradeira solidão, de si per si, um eterno retorno.

Vamos a isto, para que me liberte da história que me aprisiona – Gabo escutou o final com grande atenção:

Apenas muitos anos depois (cem anos?) os pergaminhos de Melquíades seriam decifrados por Aureliano Babilónia, pai do último Buendía à face da terra. Percebeu então que aquela era a última florescência da árvore familiar, “como se estivesse a ver-se num espelho falado”.

O outrora lugar feliz onde ninguém morria era agora um povoado decadente e envelhecido, caminhando para a extinção, perturbação e desnorte: “Então começou o vento, morno, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às notalgias”. No final, tudo se finda entre uma variedade de lacraus e borboletas amarelas, num “pavoroso remoinho de pó e escombros”. Até ser só isto:

Essa Macondo, essa que já não é mais – varrida de vento e pó – porque “estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no momento em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que neles estava escrito era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra”.

Gabo respirou fundo. Nada mais poderia fazer. Os ventos proféticos falaram. A história escreveu-se. Aquela era uma noite de sonho, sem solidão.

Cartagena brilha, dourada, à luz da noite e das velhas muralhas. Gabo vai agora em paz comer uma arepa de coco, doce e branquinha, tão branquinha como a neve que, nos tempos mais antigos, cobria os terrenos em volta do que haveria de ser e mais tarde deixar de ser a mítica Macondo.

*Todas as passagens colocadas entre aspas são citações da obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, Dom Quixote, 26.ª edição (tradução de Margarida Santiago), 2009.

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