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Cultura, Literatura e Filosofia

NAS FRANJAS DO DESESPERO

Regina Sardoeira
O desespero envia-nos para lá do sofrimento, a angústia amarra-nos ao paradoxo de viver e nesta dupla encenação subjectiva se vai tecendo a trama do ser humano: humano, porque assim o designamos nós, a meio caminho entre a divindade e a besta ou entre a besta e a divindade, que a ordem dos termos não é arbitrária. Pelo desespero, damo-nos conta da necessidade de ascese e, no percurso escatológico, forçamos a subida dos lodaçais miseráveis dos pequenos nadas até aos prodígios onde a clareza se expande e o arco-íris rasga o acervo plúmbeo do vestuário cerúleo. A angústia permanece na esfera prodigiosa e recôndita da consciência lúcida que nos segreda a premência da missão e, em simultâneo, nos faz temer não sermos os escolhidos; a angústia agarra-nos no segredo dos acordares em noites de sombra, para nos fazer duvidar da nossa magnificência reconhecida na apoteose que o olho solar engendra. O desespero e a esperança, aparentes antónimos, são contudo o reverso dialéctico um do outro, já que é nas sendas mais sombrias do negrume ou do arrepio, ou do suor frio urdido no medo, que bruscamente a vontade se arvora na soberania da esperança. A angústia é o reflexo da centelha divina, a subtil tomada de consciência da irmanação com o supremo ente, quer ele tenha uma espécie de corporeidade transhumana, quer se amalgame ao todo e se assuma em panteísmo absoluto. Sedentos da supremacia divina e contudo presos às esferas falazes de uma condição orientada para uma certa finitude, cremo-nos investidos de uma missão, à semelhança da que foi outorgada a profetas, a messias e a anjos e,  no entanto, há uma marcação que não ousamos ultrapassar, ou porque não nos chegue a força de apenas humanos, ou porque não tenhamos fé suficiente para alçarmos a nossa figura nos ares. Contudo, toda a fé é paradoxo, toda a crença, absurdo e escândalo, pois nos envia para regiões de que apenas suspeitamos, ou porque a elas acedemos por uma crença desprovida de razoabilidade, ou  porque o inconsciente, tornado espírito, nos revela insondáveis regiões de que nada sabemos, mas para que tendemos numa escalada sem fim. E é então que o iluminado grita, imerso no circuito de sombra que toda a luz invariavelmente produz: Serei  eu o escolhido? Será minha esta missão? Encontrar-me-ei na plenitude deste reino, soberano de mim, soberano do mundo e no mundo e mesmo para além dele ou, pelo contrário, nada haverá por detrás do vigor esplendoroso da luz que apela ao meu caminhar decidido e possante?
Assim vive o ser consciente, saído da bestialidade, quando a coluna erecta lhe retirou os olhos do solo e  o expôs, triunfante e vulnerável, à vastidão de todos os mundos, estes, que pisamos com passos de matéria, e os outros, a que nos alcandoramos, pendurados em poderosos eflúvios de uma espiritualidade energética que não ousamos ou não podemos prender.Porém, nem todos são humanos deste modo, já que a maior parte se queda no conformismo auto-complacente e ousa apenas perseguir pequenas metas, crentes, todos esses, de que o mundo está aí para compromissos medianos, humílimas realizações, miseráveis empreendimentos a que, no entanto, ousa chamar nomes grandiosos. Esses, bípedes de coluna erecta e contudo rastejantes, nada entendem do desespero e da angústia dos que planam acima deles e contudo lhes parecem soterrados em lamaçais – pois nos lamaçais ergueram as suas casas e neles acham que deve viver o foragido das nuvens e dos picos altaneiros. Blasonam, impiedosos e contudo ridículos, pois lhes agradaria dominar o ser das alturas e fazê-lo enlamear-se com eles no atoleiro dos seus princípios vãos; não hesitam em chamar-lhe louco, pois não poderão entender nunca que essa loucura é,  afinal, o único caminho do humano! Era necessário que os tingisse um pingo, ao menos, de grandeza e que fossem, ao menos, um pouco leves para ascenderem aos cumes e verem – se a si próprios abaixo de si.

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