Regina Sardoeira
“A menina mais bonita de Amarante”: assim se referiam a ela, nos anos 30 do século XX. Uma menina de cabelos muito loiros, caindo suavemente em ondas leves, uma menina de rosto oval e tez delicada, onde o sol não deveria poisar com muita intensidade, uma menina de porte elegante, ainda que discreto.
Vestia simplesmente; mas qualquer tecido ou modelo caíam nela com uma graça tal, que ofuscava todas as outras, porventura mais pródigas em atavios.
Durante cinco anos da sua vida frequentou o Colégio de S. Gonçalo, em Amarante.
Foi a mãe, uma mulher poderosa e lutadora, quem venceu a resistência do pai, homem prático e com uma mentalidade típica do seu tempo (“As meninas devem ajudar a mãe, aprender a cozinhar e a arrumar a casa…estudar para quê?”), que levou avante a sua ideia de dar à filha uma educação aprimorada. E, não se poupando a esforços, conseguiu mandar a filha para o colégio de freiras, onde ela permaneceu, em semi-internato.
A vida, nesse colégio católico, onde pontificavam freiras e padres, teve nela uma influência profunda, duradoura e benéfica. Ainda hoje, do alto dos seus 95 anos, é muito frequente ouvir – lhe estas palavras: “Os anos que passei no Colégio foram os mais felizes da minha vida!” Não adianta recordar-lhe que também casou e teve filhos, que foi uma professora exemplar que, enfim, pode perfeitamente encontrar outras ocasiões de felicidade. Fica a meditar um pouco e retorna: “…mas aquele tempo, o colégio, as freiras…”.
Creio que as influências determinantes no crescimento da “menina mais bonita de Amarante” foram as que decorreram do ambiente austero, mas amigável, do Colégio, na convivência piedosa com um conjunto de freiras que nunca esqueceu, e da educação dada pela mãe, no espírito das atitudes rectas, no hábito discreto de ser e de se mostrar ao mundo, na disciplina e na bondade.
De muito nova adquiriu o hábito e depois a paixão pela leitura. Os livros escasseavam na casa de Jazente. Os pais eram um casal dedicado ao comércio e dele vinham os seus recursos; mas todos os dias entrava porta adentro O Comércio do Porto, e nele havia, nesse tempo, uma página semanal dedicada ao conto infantil. A menina aguardava ansiosamente o dia anunciado para ler a história; mais tarde, quando o jornal perdia a actualidade recortava a página. Foi desse modo que, lentamente, construiu o primeiro livro a que pôde chamar seu e que ia relendo e relendo e relendo…
Já na adolescência, a mãe comprou-lhe a colecção das obras de Júlio Diniz que se constituíram em ocasião de deleite, anos a fio, mesmo quando, muito tempo depois, possuía uma biblioteca com outros autores.
Foi uma boa aluna, muito embora ela afirme que nunca passou da mediania. Porém, vendo os boletins das notas que ainda conserva, e sabendo que o máximo atribuído, no tempo, eram 13 valores, os 11, 11,5 e 12 que lhe davam parecem-me excelentes classificações.
Estudou piano, latim, associado à língua portuguesa, e as restantes matérias que ainda hoje fazem parte de qualquer curriculum do ensino básico. Na sua enorme vontade de dotar a filha de tudo o que lhe parecia indispensável a uma boa formação humana, a mãe, minha avó, portanto, adquiriu-lhe um piano na altura adequada.
Quero agora falar um pouco dessa senhora, a minha avó, personalidade tão marcante na formação integral desta criança, depois jovem e mais tarde mulher adulta.
Pude conviver com ela durante 19 anos da minha vida, até a doença a levar, prematuramente, após um longo período de sofrimento. Conheci o seu carácter forte e abnegado, o seu gosto pelas viagens, o deleite com que todos os dias lia integralmente o jornal, o jeito com que amassava e cozia a broa no grande forno a lenha da cozinha, a necessidade que sempre teve de juntar a família em casa para as refeições de domingo, nas festas de ano e até na celebração dos aniversários. A vontade e o prazer dela eram que estivéssemos ali, à lareira, nas noites de inverno ou ao redor da mesa na sala de jantar, e que houvesse, para cada um, a pequena iguaria preferida, ou a refeição alternativa, consoante o gosto específico.
Não era uma mulher de letras, essa minha avó, Maria da Glória.
Filha ilegítima de um grande proprietário agrícola e da sua criada, irmã mais velha de um conjunto de três, a minha avó conheceu, em tenra infância, o benefício da abastança e dos bons tratos que o dinheiro garantia. Esse nobre senhor, de certo modo feudal, partilhava a casa com a família que constituíra, não se poupando a requintes para que as filhas se apresentassem com extrema elegância. Os chapéus e vestidos eram encomendados no Porto, porque não havia em Amarante materiais tão finos ou confecção tão aprimorada como a que ele desejava para aquelas três filhas. E era um deslumbramento quando ele levava as suas meninas às festas, bem vestidas e calçadas, quais princesas!
Porém, esse homem rico e de bom gosto, tinha uma família paralela numa região mais afastada. Afastada, mas não tanto que não chegassem à terra ecos dessa outra vida. E a mãe de Glória, de seu nome Constança, sentia a ausência do seu senhor e pai das suas filhas, ouvia as notícias dessa outra vida que lho ia roubando, mantendo-a numa posição secundária e criticável, de acordo com os padrões vigentes, e foi crescendo nela uma grande revolta.
Naqueles tempos recuados, finais do século XIX, inícios do século XX, a emigração para o Brasil era uma fuga fácil da miséria de Portugal e um modo de adquirir, em alguns anos, fortuna e estatuto social. Por aquela altura, em que o sofrimento de Constança era intenso, sentindo desperdiçada a sua vida ainda jovem, vendo o seu homem mais perdido do que achado para a convivência familiar, surgiu na terra uma companheira, vinda de férias da cidade de Rio de Janeiro. E ela, observando a amargura da amiga, convenceu-a a deixar tudo e a reconquistar a sua dignidade, embarcando para o Brasil.
Relutante, a princípio, Constança acabou por ceder. E um dia, às escondidas de todos, especialmente do pai infiel das suas três filhas, fez a mala e embarcou. Para trás ficaram as três crianças (com o propósito de as fazer emigrar mais tarde) ao cuidado da avó e rodeadas das comodidades garantidas pelo pai rico.
Porém, logo que teve notícia da fuga da mulher que mantinha e de quem se sentia dono, o rico senhor passou a ignorar inteiramente as filhas. Retirou-lhes todos os benefícios e nunca mais as reconheceu, mesmo vivendo na mesma terra e dando com elas, pelos caminhos, amiúde.
A avó era uma pobre mulher que nada tinha de seu a não ser um modesto casebre onde viveu com as meninas até que duas delas foram encontrar a mãe no Rio de Janeiro; Glória, a mais velha, ficou porque era a companhia e a ajuda para a sua velha avó de quem precisou de cuidar na doença.
Teve pois uma vida dura, de trabalho pesado, e percebeu, com crescente desgosto, que os luxos de outrora em que passeava de mão dada com o pai, envergando os vestidos delicados, vindos das lojas do Porto, haviam desaparecido para sempre.
Aquele pai nunca mais reconheceu a filha, nunca mais lhe dirigiu a palavra, nunca mais a presenteou fosse com que fosse. Nem o apelido lhe deu, em nenhum momento, o que era comum na época – pelo que ela se apelidava, somente, Maria da Glória, filha de pai incógnito.
Formada nesta têmpera, conhecedora dos embustes a que pode ser sujeita a vida de uma menina, vendo que a sua filha era bonita, delicada e sensível, Maria da Glória lutou para que ela tivesse uma boa educação, uma formação moral superior e um desígnio que a mantivesse afastada da história infeliz da sua mãe e da sua própria.
Terminados os estudos no Colégio de S. Gonçalo, em Amarante, no 6º ano do liceu, e querendo seguir carreira, a mãe conseguiu-lhe um alojamento na cidade do Porto, onde a menina se instalou para fazer o 7º ano e prosseguir para a universidade, pois queria licenciar-se em Românicas. Porém, naquela época, esse curso não existia na Universidade do Porto pelo que, querendo continuar, ela deveria fixar-se em Coimbra. Não foi. Coimbra pareceu-lhe demasiado longínqua, demasiado afastada dos seus vínculos afectivos. Teve medo da distância, do desconhecido, do isolamento, num mundo que não era o seu. Sabia que lhe iria fazer falta o braço protector da mãe, não teve a coragem de enfrentar o mundo; e, por isso, ainda no Porto, concluiu os estudos na Escola do Magistério Primário.
Assim nasceu a professora Maria Constança, cuja história comecei hoje a contar.