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Cidadania e Sociedade

“MÃE, EU VOU MORRER?”

Regina Sardoeira

Entretanto, do casal amoroso e jovem, nasceu um filho.

Foi um lindo bebé, de cabelo loiro e caracóis bem definidos e encheu de júbilo toda a família. Porém, poucos meses transcorridos, os pais vem a descobrir que alguma coisa não estava bem e que a criança sofria de uma qualquer perturbação provocadora de estremeções anormais. Começa então um périplo pelos médicos, a consciência de que o bebé se ia atrasando no desenvolvimento, a dura experiência de alarmantes ataques epilépticos que, pelos cinco anos de idade terminaram, arrasando-lhe em definitivo a capacidade mental de evoluir.

Não sei compreender, por inteiro, a devastação que um tal acontecimento terá provocado no âmago do casamento dos mus pais. Mas sei que eu, nascida três anos depois, vim a assumir, por inteiro, a missão de me tornar na salvadora da família. Ao contrário dele, eu era inteligente, viva, precoce – todos me diziam estas palavras e eu sentia-as em mim. Vendo a angústia gerada por aquele belo menino, destruído para a fruição normal da vida em pleno, senti, muito cedo, por volta dos quatro anos de idade, que era meu dever compensar os meus pais.

O meu irmão mais velho, esse que nasceu marcado pelo estigma de uma doença, visível nos sintomas mas incompreensível nas causas, veio a morrer com quarente e sete anos.
Nunca cheguei a salvá – lo, eu, a redenção da família, nascida para ser a contrapartida das fragilidades de todos, de uma forma ou de outra atingidos pelo revés.
Depois de uma primeira infância, marcada por frequentes episódios de epilepsia, depois do internamento num colégio de reeducação pedagógica, durante vários anos, sem nada evoluir e de onde saiu porque o próprio director admitiu nada poder fazer para restituir -lhe a normalidade, depois da passagem por um “educador”, na cidade do Porto, que em nada contribuiu fosse para que educação fosse, o meu irmão veio para casa. Era “atrasado mental”: não sabia ler nem escrever, nem contar, conversava de modo pueril e repetitivo, procedia em tudo como uma criança de cinco anos, tornada adolescente, depois jovem, mais tarde, adulto.

Habituámo-nos. Aceitámos aquele irmão, filho, neto, sobrinho como um de nós, mesmo não o sendo exactamente. Até uma certa idade, nada no seu aspecto físico, indicava a menor deficiência: teve sempre a estatura adequada à fase da vida, o rosto ia sofrendo as alterações normais, o corpo foi-se desenvolvendo sem problemas visíveis. Era um pouco à margem, somente na medida em que não tinha os comportamentos esperados e, quando falava, sentia-se que alguma coisa não batia certo. Perguntava, frequentemente, se “depois de um dia vinha outro”, como se percebesse e o inquietasse o passar do tempo. Usava as mãos para fazer círculos, querendo confirmar que os dias se sucediam numa sequência circular, gostava de ver os carros passar na estrada e também a eles referia o gesto circular com que interpretava o curso do tempo. Brincava com carrinhos que, juntamente com revistas de automóveis, eram o seu presento preferido.
Tinha um temperamento afável, passadas que foram algumas crises do crescimento, gostava muito de toda a família (sempre preferiu viver com os avós, mas, como as casas eram próximas, convivíamos diariamente), era, em suma, o meu irmão mais velho e ocupava o seu lugar do jeito que lhe era possível.
Muito mais tarde, quando era um jovem adulto, surgiram certos sinais de que alguma perturbação fisiológica, independente do “atraso mental”, começava a manifestar-se. O rosto foi perdendo as características de normalidade, apareceram algumas manchas escuras na pele e, facto desencadeador de novas consultas médicas, os rins começaram a funcionar mal. Quando foi internado, após uma grave hemorragia renal, nasceu o primeiro diagnóstico acertado: o meu irmão sofria de esclerose tubular e, entretanto, como se trata de uma doença genética e degenerativa, um rim já havia sido destruído e o outro funcionava pela metade! Tinha então um pouco mais de trinta anos, passara toda uma vida condenado a uma certa marginalidade social, sofria, sem dúvida, de perturbações e dores que não era capaz de expressar devidamente e, na cama do hospital, onde não recebeu qualquer tratamento, parecia abandonado à morte!
Nos seis anos seguintes, a minha mãe lutou pela vida dele, procurou as medicinas alternativas e conseguiu, senão restituir-lhe a saúde, ao menos garantir-lhe mais alguns ano de uma vida precariamente normal.

Quanto a mim, desconcertada com a descoberta tardia, de uma doença que conheceu as primeiras manifestações no corpo infantil do primogénito da minha família, fui logo tentar perceber a história dessa designada esclerose tubular ou tuberosa. Soube que deriva de uma mutação genética espontânea, que afecta um em 6000 indivíduos e que é difícil de diagnosticar por apresentar sintomas diferentes, de pessoa para pessoa. Os episódios de convulsão epiléptica foram, sem dúvida, a primeira manifestação da doença, no caso do meu irmão. Porém, à época do seu nascimento e depois, Portugal não tinha o conhecimento médico e os meios de diagnóstico capazes de perceberem os contornos da doença. E assim, a criança foi tratada em função da deficiência mental, submetida a prescrições de medicamentos psicotrópicos, encerrada num colégio de reeducação pedagógica- o melhor (talvez único) no país – e depois, criado em casa, de acordo com a sua idiossincrasia. De realçar que os meus pais, querendo a todo o custo compreender e talvez curar a doença do filho, consultaram o eminente e laureado pelo prémio Nobel, Dr. Egas Moniz, o qual, apesar da celebridade e sapiência, nada conseguiu adiantar.

A doença pode afectar os diversos órgãos do corpo, principalmente o coração, os pulmões, os rins, e caracteriza-se pela formação de tumores (tubérculos) que, não sendo extraídos, podem comprometer, até à falência total, o respectivo funcionamento. Ora, no caso do meu irmão, tratado como deficiente mental, sem autonomia ou discernimento capazes de exprimirem o que se passava com o seu corpo, a doença seguiu o seu rumo e destruiu -lhe os rins. Por fim, matou-o.

Ele tinha preocupações com a morte e uma das suas questões, principalmente, julgo, quando se sentia mal ou sofria crises renais era: “Mãe eu não vou morrer, pois não?”; e tranquilizava-se quando lhe era garantido que não, que ficaria melhor e viveria. Porém, no dia em que deu entrada no hospital, pela última vez, a pergunta mudou ligeira, mas significativamente: “Mãe, eu vou morrer?”, como se soubesse que aquele era o fim da jornada.

Conto a história do meu irmão mais velho, por causa da tarefa que para mim própria criei, quando tinha cinco anos de idade: nascera, inteligente e forte, para compensar a família do desgosto de terem um filho “atrasado mental” (e, se assim me exprimo, usando esta expressão, hoje tida como insultuosa, é na justa medida em que era desse modo que a ele se referiam na época). Creio que não pude compensar ninguém e, lançada que fui para um certo destino, quando tinha dez anos de idade, eu própria comecei a precisar de ser salva.

Mas conto-a ainda mais para enaltecer a luta heroica daquele pai e daquela mãe que nunca desistiram de tratar o filho, usando todos os meios disponíveis na época. e ainda para realçar o amor incondicional de uma mãe que, ainda hoje, 26 anos depois da morte do filho mais velho, evoca a sua memória com saudade e pungência e a última frase que ele proferiu, já no hospital, sentindo, decerto, a garra fatal da morte: “  Mãe, eu vou morrer?”

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