Regina Sardeira
Devo à minha mãe, para além da vida, o gosto pelo saber.
Ela diz que não precisou de ensinar-me a ler, quando entrei na escola; de facto, não recordo essa aprendizagem específica. Mas, numa casa cheia de livros, sei que fui irremediavelmente atraída por eles e para eles.
Lembro-me da escola, da leitura em voz alta, dos ditados, das redacções, das idas ao quadro, da pesquisa, nos mapas, de regiões mais ou menos longínquas.
Aprendi os números e as contas, cada vez mais difíceis à medida que os anos avançavam; e os problemas, quais charadas aritméticas, representavam um desafio de interesse crescente.
Estudei, com rigor, toda a História de Portugal, os nomes e cognomes dos Reis, as revoluções, as lutas pela independência e pela restauração, os golpes militares, as batalhas. Fui muito patriota nesse tempo.
Os portugueses eram narrados como sendo os maiores heróis à face da terra e toda a saga dos descobrimentos, a bravura dos marinheiros embarcados em verdadeiras cascas de noz, a chegada a regiões remotas e inexploradas, para lá de toda a imaginação, acendiam a minha fantasia.
Na escola primária de Jazente aprendi a escrever correctamente e, ainda hoje, quando penso em certas palavras e na classe a que pertencem, sei que foi aí, através do magistério da professora, que tive notícia e registei todas as variantes. Advérbios, preposições, conjunções, formas verbais, as mais complexas, sintaxe, semântica, figuras de estilo…tudo me foi transmitido nesses quatro anos!
Aprendíamos muitas regras, enunciados e as mais diversas listas de elementos que depois teríamos que usar na escrita; e aprendíamo-las de cor. E, pelo menos no meu caso, as aprendizagens persistiram…até hoje!
Aquela professora corajosa não desistia, mesmo quando os alunos eram lentos ou mais ou menos imunes ao acto de aprender. Infatigavelmente, retomava as matérias, apelava à atenção, obrigava e estimulava os reticentes.
Havia castigos físicos na época. Faziam parte do material didáctico uma régua e uma cana; e eu lembro-me do som das reguadas nas palmas das mãos e do sibilar da cana pelas orelhas quando certos alunos cometiam erros ou se embaraçavam nas contas.
Ninguém se queixava. E eu sei que os castigos corporais eram solicitados pelos pais, à professora, cientes que estavam da necessidade de aprender e das dificuldades dos seus filhos. Naquela época, o analfabetismo era notório e, numa aldeia eminentemente rural, de rudes tarefas e rudes vivências, os pais desejavam uma vida melhor que a deles para os seus filhos. Aliavam-se à professora nessa demanda e não desistiam – tal como ela.
Quando chegava a quarta-classe e o limite escolar do ensino obrigatório, era necessário fazer exame. A professora e as alunos precisavam de estar bem preparadas para enfrentar a prova, na sede do concelho. E a minha mãe não pactuava com reprovações.
Feita a selecção das alunas que reuniam condições para enfrentar o exame com êxito, a professora, Maria Constança, recebia-as em sua casa e, pela tarde dentro, as lições prosseguiam, dia após dia. Garantia, desse modo, que as aprendizagens fossem solidamente assimiladas; e, em 30 anos de docência, nunca foi penalizada com uma reprovação.
Por aquele tempo não era comum, nas aldeias, os alunos seguirem estudos. Feita a quarta-classe, terminava a obrigatoriedade de ir à escola e o diploma e a cultura adquiridos eram tidos como satisfatórios para uma grande parte dos portugueses. Porém, a professora Maria Constança, observando as alunas e percebendo que algumas delas se destacavam pela inteligência e pela capacidade de trabalho, chamava os pais e dizia-lhes: “A sua filha pode continuar os estudos, é uma pena ficar só com a quarta classe!”
Os pais, reticentes, falavam das muitas dificuldades de acesso a outras escolas, da despesa, etc. E a professora insistia: “Façam um sacrifício, a vossa filha merece!”
E a verdade é que muitas dessas jovens fizeram o exame de admissão aos liceus, frequentaram o Colégio de S. Gonçalo (que foi, durante muito tempo o único estabelecimento de ensino secundário na região) e vieram a tornar-se professoras.
Evocar esta época é, para mim, um hino de louvor à professora e minha mãe, Maria Constança.
Um dia, a revista Amarante Magazine achou por bem entrevistar-me. Uma das questões visava saber que professor de referência eu guardava na memória. Passei-os em revista, evoquei o liceu e a universidade… e não fui capaz de citar um único nome! Aquele vazio perturbou-me: então, entre tantos e tão variados professores, eu não seria capaz de citar um único?
Foi então que recuei mais um pouco, fui até aos primórdios da minha escolaridade e soube que, efectivamente, a minha professora de culto, mesmo depois dos anos do liceu e da universidade, aquela que, de facto, deixou sementes e frutos foi a professora primária Maria Constança!
Ela abriu-me o caminho para tudo o que viria a ser a minha motivação fundamental. Diz ela que, quando eu era criança, a perseguia literalmente pelos cantos da casa a querer saber. “Mãe, o que quer dizer esta palavra? Mãe, o que significa esta imagem? Mãe, como se faz este problema?”
Ela respondia, indicava-me onde procurar o significado das palavras, como resolver esta ou aquela dificuldade. Eu rejubilava e garantia que, quando crescesse, seria também, e como ela, professora!
Por isso, quando um certo aluno, hoje tornado ilustre por razões familiares e mediáticas, assevera que foi com essa professora, a D. Constança, numa aldeia inóspita e rude, numa escola despojada e fria, com colegas esfarrapados e descalços (é deste modo que ele relembra o ambiente do único ano que passou em Jazente), que “aprendeu o gosto pela leitura e que lhe deve isso eternamente”, eu evoco a minha própria experiência e sou forçada a dar-lhe razão.