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A PROFESSORA MARIA CONSTANÇA:UMA LIÇÃO DE VIDA

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Regina Sardoeira

Entretanto, os anos foram passando e, após cerca de 40 anos de docência, efectiva na escola de Jazente, transferida para o Porto, para onde a família se mudou, e onde continuou a ser, durante 10 anos, a professora de sempre, e regressada a Jazente, Maria Constança concluiu o seu magistério.

A partir daí, levou uma vida calma e simples, porque estes requisitos fazem parte do seu carácter, ocupada com a gestão da vida doméstica que sempre foi uma das suas competências e com os cuidados ao filho doente. Nunca teve grandes voos, nunca optou por viajar (ainda que o tivesse feito em visita a sítios que lhe eram caros, tais como o santuário de Lourdes e os picos da Europa, por exemplo), cuidadora absoluta que foi do filho Luisinho e cuja memória evoca sempre com imensa saudade.

A leitura constituiu-se sempre como um dos seus lazeres favoritos. Nunca, até aos dias de hoje, vai para a cama sem a companhia de um livro e a sua preferência incide nas diversas biografias de santos, que possui em quantidade, nas obras sobre Jesus Cristo e em romances de certos autores, dos quais destaco as obras do dilecto aluno Miguel Sousa Tavares.

Miguel Sousa Tavares, aluno da escola de Jazente durante o curto período de um ano lectivo (1956/57), afirmou publicamente, por escrito, em artigos de jornais e revistas, em programas de televisão e no último livro que publicou, que a professora Maria Constança se constituiu como uma referência duradoura na sua vida. A professora, na modéstia que sempre a caracterizou, sentindo que aquele homem, célebre e distinto, filho de uma escritora laureada – a Sophia de Mello Breyner – que, na altura, veio a Jazente agradecer-lhe ter ensinado o filho. ao prestar-lhe assim homenagem estava a conferir-lhe uma honra. E lia e guardava os recortes dos jornais e revistas com orgulho e entusiasmo, ouvia a referência ao seu nome com um prazer inequívoco e, mais tarde, começou a ler também os romances da sua autoria.

Vendo esta admiração da professora da província por um ex-aluno, tornado cosmopolita e célebre, senti que deveria tomar uma iniciativa e escrever-lhe, propondo que viesse a Jazente visitá-la. Assim fiz. Mas para além de nunca receber resposta â minha carta, vi, com desagrado que a ilustre personagem achou por bem referir no seu último livro (“Cebola crua com sal e broa”) a carta que eu, a filha da tão estimada professora lhe havia escrito, e fazê-lo do seguinte modo:

“Um dia, já bem grandinho, num programa do Herman José, na televisão, prestei homenagem à minha professora, D. Constança e tive a grande satisfação de receber uma carta de uma neta dela que contava ter sido minha colega na escola de Jazente e que a avó, ainda viva e residindo num lar, assistira ao programa e ficara muito comovida ao ouvir-me falar dela e prestar-lhe homenagem. (…)”

As incorrecções são bem óbvias, quanto à autora da carta e ao estado da professora que não estava nem nunca esteve num lar…

Mais tarde, sabendo que ele estaria em Amarante, num debate intitulado Conversas em Amarante, no Hotel da Calçada, fui assistir com a minha mãe, tencionando cumprimentá-lo no fim e dar-lhe a oportunidade de fazer a dita homenagem ao vivo. Assim fizemos.

Ora, o ex-aluno não só não reconheceu a autora da carta, como cumprimentou a professora de um modo trivial, com dois beijos na cara, posto o que, quase sem palavras. se retirou.

Nenhum destes factos teria importância se não fosse a admiração da antiga professora pelo antigo aluno, aparentemente recíproca, os anos todos que decorreram entre 1956 e o presente e o facto de o admirador e grato aluno nunca ter vindo, pessoalmente, prestar-lhe uma verdadeira homenagem.

Se falo dele é na medida em que sei o quanto significaria para ela receber essa visita, assim como a de centenas de outros, agora homens e mulheres, que lhe devem, se não tudo aquilo que aprenderam na vida, pelo menos o impulso vital para novas aprendizagens.

Porém, em mais de 30 anos de reforma do ensino, nunca os ex-alunos de Jazente se reuniram para prestar tributo à, agora idosa, professora. Deveriam tê-lo feito? Creio que sim. Mas creio, ainda mais, que isso já deveria ter acontecido.

Acontece que, hoje, com 95 anos, embora ela seja uma pessoa pujante de saúde e de vontade de viver, mais ainda do que há vinte anos atrás, a memória e as capacidades mentais dela não são tão acutilantes como dantes. Provavelmente agradar-lhe-ia receber a homenagem dos antigos alunos; mas no dia seguinte teria esquecido a celebração! Provavelmente recordá-los-ia de um modo incompleto e daí a pouco não se lembraria já do nome deles.

Foi por isso que resisti a levá-la ao lançamento do livro do Miguel de Sousa Tavares, aqui, em Amarante. Não quis que ela se sentisse embaraçada ou confusa e nem sequer ouvisse convenientemente as palavras que, a propósito, fossem referidas. Não quis que ela estivesse lá para servir de figurante numa história que é a do autor do livro, que é a memória imperfeita e incorrecta de um ano da vida dele e que nada tem de carga emocional afectiva no que diz respeito à muito falada professora. Poderia ser que, finalmente, o homem recuperasse a criança que foi e soubesse homenagear de facto a professora; mas o pretexto seria sempre ele, o livro dele, as recordações dele.

Percebo, contudo, por que razão ele recorda e refere tão assiduamente a professora, D. Constança.

Ele escreveu, num artigo no Expresso, há algum tempo, que lhe deve, justamente a ela, a professora das primeiras letras, o gosto pelos livros e pela leitura e que lho deverá eternamente. E eu, que pisei o chão da mesma escola durante 4 anos, com a mesma professora, posso afirmar exactamente o mesmo. Decerto, no restante percurso escolar, o Miguel Sousa Tavares não encontrou um professor do mesmo quilate – tal como eu.

Embora a minha mãe tenha 95 anos e os lapsos de memória, decorrentes da idade avançada e de uma ou duas sequelas de intervenções ao cérebro devidas a quedas, ela é hoje, mais do que nunca, uma força da natureza.

Acorda sempre demasiado cedo, antes das 7 da manhã, principalmente para quem está com ela e gostaria de dormir mais um pouco. Tal não é possível, porque ela levanta-se, sai do quarto, veste-se, faz a cama e faria sei lá que mais se não fosse, entretanto, impedida. Nunca a deixamos só pois tem uma energia tal e vive numa casa tão grande e com tantos desníveis que poderia tropeçar e cair como já aconteceu. Mas é uma mente inquieta e um espírito atento.

Gosta muito de comer e nenhuma iguaria lhe prejudica a digestão ou lhe provoca crises de fígado; adora passear de carro e visitar locais aprazíveis e depois regressar à sua casa onde tem o seu mundo. Não é imteiramente do seu agrado pernoitar fora de casa, do seu quarto, dos seus objectos, dos seus livros e do terço que tem que levar sempre consigo.

Posso dizer que a professora Maria Constança vive bem, com saúde e autonomia. Tem duas cuidadoras durante 24 horas e, ao fim de semana, os filhos revezam-se para serem a sua companhia. A esse propósito, quero apenas acrescentar um comentário.

Nenhum filho está preparado para tornar-se o “pai dos seus pais”, nenhum filho aceita, calmamente e com resignação, ver o pai ou a mãe em declínio e ter que, por sua vez, tomar conta de quem em tempos o cuidou. Dizem que é um dever. Decerto é uma espécie de paga pelo tempo, bastante longo, em que o filho dependeu dos pais. Mas é um processo inverso e, de certo modo, contra a natureza. Nós, os filhos, habituámo-nos a ver nos nossos pais a força, o suporte, o auxílio; e quando eles começam a ausentar-se da vida e a precisar que sejamos nós a ser esse suporte, essa força, esse auxílio, sentimo-nos um pouco perdidos.

Confesso que tive alguma dificuldade em, primeiro ver e depois aceitar que, mau grado a aparência saudável, a minha mãe não é, exactamente, quem foi. Confesso que me apetece muitas vezes insistir com ela para que converse comigo como dantes, para que se movimente como costumava fazê-lo, para que retome a atividade de outrora. Mas invariavelmente revisto-me de paciência e aceito a sua nova condição.

A certos níveis percebo que ela melhorou o carácter tornando-se mais doce, mais afectiva, menos rígida e inflexível do que era. E ver essa transformação tem um lado agradável pois hoje é bastante mais fácil conviver com ela, uma vez que também se tornou muito mais tolerante. Estas novas qualidades são visíveis na cor rosada do seu rosto e na bonomia do seu sorriso e eu sei que os outros também vêem nela essa luz e a reconhecem.

E é por isso que a professora de Jazente, Maria Constança, é uma lição de vida por tudo o que realizou na vida dos outros, e logo também na dela, e pela serenidade e alegria com que vem enfrentando os 95 anos que muitas vezes se esquece que já tem.

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