
Regina Sardoeira
Escreveu Albert Camus:
“O único problema filosófico realmente sério é o suicídio: saber se a vida vale ou não valer a pena ser vivida é responder ao problema fundamental da filosofia.”
Mas se a vida não valer a pena, se descobrirmos que, por mais que façamos, nada de importante vai acontecer que mereça justificar a existência. caímos no absurdo e a existência assemelhar-se-á, bem cedo, ao que a mitologia relata acerca de Sísifo.
Sísifo, mestre da malícia e da felicidade, entrou para a tradição como um dos maiores ofensores dos deuses; pela sua arrogância e pela sua reincidência foi severamente punido.
Sendo rei da cidade-estado de Corinto, Sísifo, certo dia, viu uma águia sobrevoando a sua cidade levando nas garras, com cuidado, uma linda jovem que ele reconheceu como Égina, filha do rio-deus Asopo que havia sido raptada. Sísifo acusou o deus e, enfurecido com a sua arrogância, Zeus envia Tanato, o deus da Morte, para levá-lo ao mundo subterrâneo. Sísifo consegue enganar o enviado de Zeus e aprisiona-o; ninguém mais morreu enquanto Tanato foi mantido em cativeiro por Sísifo, questão que só foi solucionada quando; finalmente, Hades descobre onde está Tanato e envia Ares para resgatá-lo.
Os deuses olímpicos ficam a cada momento mais enfurecidos com Sísifo, até que Sísifo é finalmente morto por Tanato e conduzido por Hermes ao reino dos mortos. Antes de morrer, instrui a sua mulher para não enterrar o seu corpo.
Já no Hades, Sísifo reclamou com o Rei dos Mortos pela falta de respeito da sua esposa em não o enterrar. Então suplicou por mais um dia de prazo, para se vingar da mulher ingrata e cumprir os rituais fúnebres. Hades concedeu’lhe o pedido. Sísifo então retomou o seu corpo e fugiu com a esposa. Havia enganado a Morte pela segunda vez.
Sísifo morreu de velhice e Zeus enviou Hermes para conduzir a sua alma ao Hades. No tártaro, Sísifo foi considerado um grande rebelde e recebeu o castigo de, por toda a eternidade, rolar uma grande pedra com as suas mãos até ao cume de uma montanha, sendo que todas as vezes que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até ao ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.
Sobre este tema Albert Camus escreveu um ensaio, O Mito de Sísifo, em 1941. No ensaio, Camus introduz a sua filosofia do absurdo: observa o homem em busca de sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível, desprovido de Deus e de eternidade. Será que a realização do absurdo exige o suicídio? Camus responde: “Não. Exige revolta”. Percorre, então, várias abordagens acerca do absurdo na vida. No último capítulo compara o absurdo da vida do homem à situação de Sísifo.
Reflectindo sobre a minha citação inicial de Camus, segundo a qual o suicídio é a questão fundamental da filosofia ou o problema de saber se a vida vale ou não vale a pena ser vivida, e comparando a existência humana ao labor sem sentido desse condenado, a resposta parece óbvia: não, uma tal vida não merece ser vivida porque é destituída de finalidade ( “exige revolta”, diz Camus).
De facto, se observarmos a nossa rotina quotidiana perceberemos, sem dificuldade, que repetimos gestos, fazemos e desfazemos acções, realizamos tarefas desprovidas de importância, porque não contribuem para nada de válido, vamos acrescentando tempo ao nosso tempo de vida, neste absurdo caminhar, e acedemos à velhice e à morte – situações para as quais não temos fuga.
Procuramos o sentido da vida. E se, afinal, esse sentido não nos for dado? Se jamais pudermos descobrir a finalidade da nossa existência na Terra?
Decido então mudar a perspectiva; e em vez de “sentido” falarei de “propósito”. O sentido é abstracto, transcendente, se quisermos, inacessível ao alcance limitado da nossa razão e da nossa existência. Um propósito, esse, podemos criá-lo quotidianamente, levantarmo-nos com ele e assumi-lo em pleno no decurso do dia, fazendo com que aquelas horas, em concreto, valham a pena.
Recuperei, então, um poema que já escrevi há algum tempo. E como ele se ajusta a uma outra leitura do destino de Sísifo, que não a interpretação absurda e desencantada de Camus, aqui o transcrevo como conclusão desta minha crónica:
Sísifo
afinal
é feliz
Sísifo empurra o rochedo pela montanha bravia até ao topo.
Sisifo bem sabe que o suor lhe inunda o corpo todo.
Sisifo arranha os membros e corcova o dorso todos os dias,
todos os anos,
todos os séculos.
E contudo,
Sísifo é feliz.
Quando chega ao alto da montanha,
o rochedo solta-se da terra:
e rola
e rola
e rola…
e Sísifo ri,
braviamente ri,
enlouquecido ri.
Sísifo vê o rochedo partir
das suas costas corcovadas,
mas rijas,
vê o rochedo
romper caminho,
entre arbustos e dejectos,
e solta gargalhadas estrepitosas
enquanto mergulha na fonte
e refresca a pele gretada.
Sísifo,
depois,
ergue os ombros,
levanta o rosto para os céus,
em desafio,
e começa a descida,
sempre a mesma,
desde há séculos…
Como é curta essa caminhada invertida!
mas como é diferente a montanha,
agora,
que pode caminhar com leveza,
agora,
que pode ouvir o canto dos pássaros,
sentir a carícia das ervas rasteiras
nas pernas nuas,
aspirar a fragrância da terra
e o odor melífluo das flores!
Sísifo conhece bem o seu destino.
Sísifo bem sabe
que o rochedo tem que ser carregado,
uma vez mais,
até ao topo da montanha.
Mas,
enquanto desce,
não pensa nisso.
Deleita-se.
Embriaga-se.
Extasia-se.
Sísifo desce a montanha quase a correr,
pois o declive é grande
e o tempo curto.
O trabalho da sua condenação
tem um prazo rígido,
uma hora certa.
Mas enquanto desce,
leve,
solto,
bravio,
com os cabelos ao vento
e os braços bem levantados para o alto,
Sísifo é feliz
(Pudéssemos nós ser felizes como Sísifo, condenado por toda a eternidade a um trabalho sem sentido, e no entanto capaz de, no breve intervalo que a descida lhe permite, sorver a vida em plenos haustos de prazer.)