Regina Sardoeira
A violência exprime o tempo que vivemos. Não falo apenas de violência física, de pessoas contra pessoas, mas de uma espécie de inquietude disfarçada sempre preparada para explodir. Vem, provavelmente, do centro da Terra, esse enigma, às vezes perturbante, outras, encerrado numa espécie de olvido, e contagia os seus habitantes, pedaços que são da mesma matéria que esculpiu o planeta. Não é possível reprimir as forças telúricas cujo irromper pode ser abrupto e tempestuoso e também não pode exigir-se que a paz (ou a apatia) reine sempre na atmosfera dos homens. A violência traduz a lei de tudo quanto é vivo, a violência é comum à criança que nasce em espasmos dolorosos e à tempestade que ribomba e depois arrasta consigo tudo o que encontra. A ordem resulta de um esforço racional cujo objectivo é dominar a natureza, fora e dentro do homem, cujas normas foram criadas e transformadas em lei mas que, bem no fundo das coisas, bem no fundo da própria consciência, não correspondem a nada de real.
Desde o início da história que a luta entre os homens, dos homens contra os outros animais, dos animais entre si e contra os restantes elementos da terra, representa a condição de sobrevivência. Exactamente, a luta. Luta pela supremacia entre as espécies, luta pelo poder dentro da mesma espécie, luta pela sobrevivência a todos os níveis possível, luta, sempre a luta.
Quando uma é vencida, se chegar a sê-lo, eis que outra se perfila no horizonte; e é mais uma ocasião de confronto, mais uma hora de tragédia cujo desfecho traz, não raras vezes, consequências que cremos funestas. Cremos, de facto, que o resíduo de escombros que fica, na natureza ou em nós mesmos, depois de um confronto, nos é desfavorável. E contudo, a tensão acumulada em ondas electromagnéticas, cuja natureza escassamente percebemos, necessita, a espaços, da descarga para que a vida possa fluir.
Quando penso na violência e, deste modo, caracterizo o mundo em que vivemos, justifico assim a perenidade dos actos e dos gestos ferozes, as sucessivas lutas e confrontos para os quais, supostamente, não existe solução definitiva. Observo a aparente quietude dos elementos cósmicos, a confiança entre os homens quando se unem em torno de ideais e pressinto que essa onda de mansidão não passa de um intervalo a preparar novas emboscadas.
Vejo a humanidade numa ânsia desmedida (e a própria desmesura já é um sinal de violência) de controlar o caos e aceder à ordem, vejo o cérebro, este nosso cérebro alojado em circunvoluções, num invólucro demasiado pequeno, a pugnar em constante esforço de encontrar a paz, subvertendo a própria realidade. E eis que nasce, desse mesmo esforço de concórdia, construído pela mente humana e que em nada corresponde à natureza de onde somos provenientes, uma plêiade de normas a apertar a mente que as construiu numa camisa-de-forças, a espaços, insuportável. E, porque é insuportável, tende a estilhaçar-se, uma e muitas vezes.
A razão tenta controlar os impulsos violentos do humano. A razão inventou uma civilização e uma cultura onde as crianças devem ser educadas, afastadas dos instintos, reduzidas a engrenagens disciplinadas, aptas para entrarem num certo sistema. Mas todo o sistema, porque se fecha sobre si mesmo, é contrário ao natural desenvolvimento desse indivíduo trazido à luz num acto violento.
Por estas razões somos entidades contraditórias, soberanas de um mundo que escassamente compreendemos. E vamo-nos perdendo.
Ganharíamos mais se nos dispuséssemos a viver em consonância com a nossa efectiva e real natureza. Obteríamos vantagens se examinássemos, com a devida atenção e sem o preconceito racional, a dinâmica do mundo a que pertencemos. Não dizem os peritos que pela nossa acção, que é humana, destruímos rios e mares, infectámos a atmosfera, transformámos o solo, forçando-o a ser o que não é, desbravámos territórios que decerto deveriam permanecer intocados, condenámos certas espécies à extinção, espalhamos gases mortíferos um pouco por todo o lado? E que fazemos nós, os culpados da devastação pela força das nossas regras? Limitamo-nos a deixar correr, já que a tarefa de reconstrução do nosso verdadeiro e exacto habitat não parece estar, doravante, nas nossas mãos.
Uso a palavra “natureza” e não sei muito bem a que estado concreto devo referir um tal conceito. E mesmo quando caracterizo como “violenta” a condição do mundo, duvido que a palavra lhe convenha. As palavras exprimem o mundo só até um certo ponto e o que quero dizer fica, certamente, nas entrelinhas.
Com efeito, pese embora o facto de haver violência nos elementos naturais e no próprio homem, coube-nos, decerto, a função de estabelecer as coordenadas de um são equilíbrio. Coube-nos, sem dúvida, a função de optimizar a braveza dos bosques primitivos e o comportamento rude dos animais selvagens. Mas a nossa moral será a marca desse equilíbrio? A domesticação das espécies, submetidas ao nosso comando, deverá ser a lei inventada do mundo selvagem, e nada poderá restar de genuíno?
Convivo diariamente com dois felinos, duas gatas. A maior parte das vezes creio estar a fazer-lhes bem, pois dou-lhes um abrigo e alimento, permito-lhes uma certa liberdade e trato-as com carinho. Mas outras vezes observo-as e ocorre-me que talvez não seja exactamente assim. Se agora as soltasse, restituindo-as à natureza, creio que lhes faria mal, porque elas desconhecem a luta pela sobrevivência, não viveram nunca nos campos, não procuraram abrigo…são, por essa razão, extensões de mim. De vez em quando, surpreendo nelas uma espécie de comportamento humano, sinto-lhes os olhos fitados em mim como se tentassem compreender-me. E capto o enigma desses pequenos seres, a mim sujeitos, não podendo afirmar com inteira certeza se os hábitos que as faço ter correspondem ao que é comum chamar-se de felicidade. São felizes estes dois animais de que sou a parente mais próxima? É este o comportamento que devo ter com elas uma vez que aceitei cuidá-las e o tenho feito…à minha medida? Questão insolúvel, decerto.
De inúmeras questões insolúveis vai vivendo o homem: e assim alimenta a sua ânsia de conhecer. Conhece, até certo ponto, e logo quer avançar mais um pouco na busca incessante que se tornou a sua própria condição no mundo. Nessa busca, onde vão cabendo hipóteses e suposições, arrasta o homem consigo a terra que lhe dá quotidianamente o ser. Escraviza os elementos, gasta-os e corrompe-os e chama a isso a luta pelo saber. Pudesse o homem ser, um dia, uno com a natureza nesse sempre adiado encontro de si para si próprio.