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Cidadania e Sociedade

ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL DE 1974?

Ricardo Pinto

A REVOLUÇÃO NA VOZ DO POVO

 
“Cartoons do 25 de Abril”
DR Centro de Documentação do 25 de Abril da Universidade de Coimbra

Como era viver nos tempos que antecederam o 25 de Abril de 1974? Que sociedade e estilos de vida poderíamos encontrar? O que mudou com a «Revolução dos Cravos»? Face a estas e outras questões que possam surgir, o melhor é pedir de empréstimo a Simon Wells a sua famosa «Máquina do Tempo» e recuarmos na história.

ESTAMOS EM 1974:

Se em 1960 havia em Portugal cerca de 31 mil televisores, agora são dez vezes mais – 380 mil ocupam a casa dos portugueses. Cada um custa cerca de 5000$00, o equivalente a 25 euros. O país pára em frente dele para ver o «Festival da Canção» ou o «Concurso da Miss Portugal». Pelo meio da programação, surgem os anúncios da época dirigidos às donas de casa, que sonham com os electrodomésticos que lhes hão de facilitar as tarefas. O mais procurado é mesmo a máquina de lavar roupa. No entretanto, têm de se contentar com o sabão azul e branco que custa 6$50.

A rua é o palco de inúmeras brincadeiras, mas, dentro de casa, os rapazes também se distraem com o «Lego» e as meninas com a boneca «Nancy», enquanto o pão com «tulicreme» aparece, cada vez mais, à hora do lanche. No verão é a corrida aos gelados «Olá».

A juventude anima-se pelos êxitos musicais que vêm de fora, apesar de chegarem muito mais atrasados do que na era da internet, que ainda há de chegar.

Uma nota de 20 paus chega e sobra para o tabaco, para o café a para o jornal. O «Português Suave» atinge os 4$70, o «SG Ventil», para os ricos, fica-se pelos 5$60. 15 tostões chega para o café ao balcão. Sentado é mais caro: 2$00, e, para os que sabem ler,  o «Jornal de Notícias» vale 2$50.

Os ordenados, esses, variam entre os 2500$00 e os 5000$00, um bom ordenado. As rendas de casa, essas, oscilam entre os 200 e os 1500$00, uma fortuna. Uma minoria desembolsa 45 contos, 225 euros, por um «FIAT 600». Às refeições predomina o peixe, ou não fosse este mais barato: enquanto que a sardinha custa 12$00/kg, a carne de vaca atinge os 50$00/kg, fazendo com que esta não seja para o prato de todos.

Imagine-se só: não há «Coca-Cola» nem telemóvel. «Shoppings» e hipermercados são uma miragem: vê-los, só em revistas estrangeiras. As crianças vivem sem jogos de vídeo e qualquer dona de casa perderia a cabeça se entrasse num hipermercado. O vídeo é uma palavra de ficção científica. Cerveja sem álcool, bom, estrangeirices. Quanto aos relógios digitais, esses, são coisas de engenheiros. Ver uma rapariga com «jeans» é um escândalo social. Os preservativos continuam a ser pedidos, às escondidas, nas farmácias.

E, de repente, os deuses enlouqueceram: cravos, liberdade e revolução: os cravos que custavam 4$00, dois cêntimos, no dia da revolução, estão a ser oferecidos ao povo. O MFA assume as rédeas da estação pública, RTP:

Revolução dos Cravos: 25 de Abril 1974 – Noticiários RTP

DR «salgueiromaia1974», YOUTUBE

 

DE REGRESSO AO PRESENTE:

E porque o combustível não pára de aumentar, o melhor mesmo é regressar ao presente e ouvir quem da máquina do tempo não precisou para viver por dentro todos os acontecimentos que marcaram a sociedade, a política, a cultura e os meios de comunicação social de então. Assim, 18 cidadãos, de diferentes pontos do país, aceitaram o desafio de partilhar as suas vivências e opiniões do período temporal em análise nesta reportagem.

 
“ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL DE 1974?”
DR

 

 
“Abel Coelho com 20 anos,
1972”
DRAbel Coelho: – Nos anos 60, as mulheres submetiam-se aos maridos. A regra geral era a pancada sobre as mulheres e os filhos. Sobretudo, as esposas cujas profissões dos maridos eram em casa (lavradores, sapateiros, latoeiros). Eram umas desgraçadas.


Miguel Moreira:
 – As mães, normalmente, dedicavam-se aos trabalhos domésticos e, por isso, eram elas que tratavam dos filhos: tratavam da roupa, do farnel para levar para a escola, mandavam-nos fazer os “deveres”, mandavam-nos à catequese, e isso dava-lhes um certa autoridade sobre os filhos.

Anabela Oliveira: – É bom não esquecer que, na maioria das aldeias, e nomeadamente nas do norte, a sociedade era essencialmente matriarcal. Os homens tinham emigrado ou estavam na guerra colonial e as mulheres tratavam da casa, das terras e das vendas.

Mónica Augusto: – A minha mãe sempre trabalhou, era professora primária. Ainda assim, para poder casar com o meu pai foi necessária autorização especial. O meu pai teve que fazer prova em como era capaz de a sustentar, embora ela trabalhasse.

Anabela Borges: – O meu pai nunca se firmou como uma figura austera ou intransigente. Sempre foi, e ainda é, uma pessoa reservada, meiga e defensor das liberdades individuais.

Abel Coelho: – Nessas idades, a alimentação diária reduzia-se a um caldito e pouco mais. Ao domingo comia-se arroz de feijão, às vezes acompanhado de um bocado de carne de porco. A menos valiosa, porque os presuntos e salpicões eram para venda.

 
“Cartão de identificação militar de
Miguel Moreira”
DR

Miguel Moreira: – Sim, a base da alimentação era de produção doméstica. O caldo (sopa) com muitos legumes e feijão, arroz, açorda para aproveitar o pão seco, algumas sardinhas ou chicharro que se dividiam para dar para todos e, aos domingos, lá poderia vir um frango ou carne de porco, criados em casa. Ao talho ia-se muito raramente.

José Lessa: – O leite e o queijo, em minha casa, era coisa que se comprava apenas ao fim de semana. As paróquias, através da Caritas, distribuíam nos centros paroquiais leite em pó e queijo que mais parecia sabão, mas eu não era esquisito e todos os dias, mesmo que em casa comesse, lá ia beber o leite e comer o pão com queijo.

Anabela Oliveira: – Na altura da revolução já se comia carne mais vezes. A de vaca sempre muito mais cara do que a de porco. O bacalhau era acessível mas, depois da revolução, passou a rarear muito no mercado. Às vezes, as pessoas iam a Espanha comprá-lo, tornando-se muito mais caro.

Anabela Oliveira: – A alcatifa era considerada, na altura, o conforto máximo. Quente, bonita, não riscava, não precisava de cera nem de passar água. Com a alcatifa, veio a moda do aspirador.

José Lessa: – Em famílias mais pobres, Anabela, o chão de muitas casas era em terra batida, forrada com jornais.

Miguel Moreira: – A da minha família era bastante espaçosa, com uma cozinha enorme pois era lá que se passava grande parte do tempo, uma pequena casa de banho com água canalizada de uma mina, três quartos e uma sala comum. Além disso, tinha-mos a casa do antigo caseiro que também era por nós utilizada. Os soalhos eram em madeira de pinho, bem como o forro.

 
“Anabela Borges na sua  primeira
comunhão”
DR

Anabela Borges: – Os sofás de minha casa e os estofos das cadeiras eram de napa vermelho-escura. Havia uma cristaleira, com os serviços de jantar e de café, e os copos de cristal para as ocasiões especiais, mas, na verdade, quase nunca eram usados.

José Pedro Sousa: – Coincidência, Anabela Borges, em minha casa, havia também uma cristaleira onde a minha mãe guardava, religiosamente, um serviço de copos de cristal adquirido a prestações e as loiças da «Vista Alegre».

José Lessa: – Comecei a trabalhar com 11 anos e recebia à semana. Aos 14 fui trabalhar como paquete para o Hospital e aí recebia 500$00 por mês. Na altura ainda vigorava uma lei que obrigava os funcionários públicos a assinar uma declaração em que, por sua honra, diziam não ser Comunistas.

Abel Coelho: – Um professor provisório, por volta de 72, 73 ganhava 2 800$00 por mês (14€). Mas não ganhava os três meses de férias. Em 76, iniciei a minha carreira a ganhar 4900$00. Em junho de 79 tive o meu maior aumento de sempre. Passei de 12600$00 para 19500$00 (aproximadamente 100€) porque acabei o estágio, logo mudei de categoria.

Miguel Moreira: – Abel, eu como professor, em 1973, tinha de salário base  cerca de 5000$00 mensais (25€), acrescidos de horas extraordinárias e gratificações na ordem dos 4000$00. Era, portanto, um salário muito acima da média.

José Lessa: – Muitas vezes tive que fazer o percurso entre o D. Afonso Henriques, na Areosa, e Rio Tinto para chamar o médico a casa, para a minha mãe ou irmão, ou para ir buscar medicação para ambos, um percurso de cerca de 20 quilómetros.

Anabela Borges: – Diariamente, tomávamos óleo de fígado de bacalhau, que tinha um sabor horrível. Éramos tratados com muitas “mezinhas”. As idas ao dentista eram uma miragem, pois só íamos quando o único remédio para os dentes era arranca-los.

 
“Mónica Augusto na infância”
DR

Mónica Augusto– A minha realidade é bastante diferente. O meu pai foi enfermeiro, morava na “casa do hospital” e tinha horário contínuo, mesmo quando o hospital estava fechado, as pessoas batiam à porta dele, que ponderava se era ou não necessário chamar o médico. Médico único, médico “do partido”, o Dr. Vítor Osório, em Tarouca, foi contestatário, só era médico do partido porque era obrigatório. Chegou, inclusivamente, a queimar o postal de Boas-Festas de Salazar em público. À conta disso, o seu filho, também médico e com o mesmo nome foi parar ao Ultramar. Um enfermeiro e um médico davam conta de um concelho inteiro, e portanto, sempre fui bem acompanhada.

Miguel Moreira: – De facto, não havia Serviço Nacional de Saúde. Isso foi uma das conquistas do 25 de Abril e que, hoje, pretendem destruir. Até ao 25 de Abril, os doentes iam aos consultórios privados dos médicos, aqueles que tinham posses para o fazer, ou tentavam curar os seus males com os tais “remédios” caseiros, de que a Anabela Borges fala. Por isso, a esperança de vida era muito curta. Quando eu era jovem, uma pessoa de 60 anos era um velhinho.

Jorge Pedro Sousa: Já vi que tive muita sorte: a minha mãe era enfermeira especialista. Talvez por isso, sempre tivemos acesso fácil aos cuidados de saúde e eu fui devidamente acompanhado por um pediatra até andar na escola primária.

 
“Anabela Oliveira na década
de 70”
DR

Anabela Oliveira: – Lembro-me das patilhas, dos bigodes e dos cabelos compridos.

José Lessa: – Anabela Oliveira, eu próprio usei patilhas, o que me valeu ser apelidado de “Cigano”, imagine só. A moda “hippie” apareceu nos anos 60, depois os góticos que se vestiam na única casa que tinha roupa para eles, a «Porfírios», no Porto e Lisboa.

Abel Coelho: – Os Beatles, o WoodstockOtis Redding foram a imagem da irreverência e pacifista a que correspondeu a divulgação da atrevida mini-saia, da autoria da estilista londrina Mary Quant. Os rapazes usavam a calça à boca-de-sino, cabelo grande, barba farfalhuda, “aspeto badalhoco”, colarinhos compridos, óculos enormes.

Anabela Borges: – Lembro-me de a minha irmã mais velha se vestir assim. Usavam os cabelos compridos, tanto as raparigas como os rapazes, colocavam fitas nos cabelos; usavam saias muito compridas ou calças de boca-de-sino; camisas estampadas com colarinhos grandes e blazers ou casacos de camurça.

Miguel Moreira: – Quem fosse a Amesterdão é que sabia bem o que era ser “hippie”. Eram jovens pacíficos, cultos, que recusavam a guerra e um determinado modelo de sociedade.

Abel Coelho: – As crianças filhas de lavradores dirigiam os bois, segavam erva, pouco brincavam. Para as outras, filhas dos senhores fidalgos, as férias eram uma festa. Depois de se acarretar um molho de lenha, de manhã à noite era fora de casa: jogava-se ao pião, ao botão, ao espeto, as meninas que ainda não eram postas a bordar, jogavam à macaca, deitava-se a estrela, jogava-se com bola de trapos, ao esconde-esconde, trepava-se às árvores, andava-se aos ninhos, roubava-se fruta, partiam-se as cabeças uns dos outros, faziam-se dos tanques e mesmo poças, piscinas.

 
“Amaro Gonçalo na 2.ª classe com

a professora Maria Clara Silva”
DR

Amaro Gonçalo: – Abel, por falar em piscinas, por vezes, parámos junto a uma presa ou represa de água, que alimentava três moinhos. Era a nossa “piscina” natural, onde os mancebos da aldeia tomavam banho. Era ali, que o meu padrinho me punha às costas, para tomar o sabor da frescura da água corredia.

Jorge Pedro Sousa: – Para os mais caseiros, os legos e livros. Cá fora, brincava-se aos índios e cowboys, a jogar futebol e a andar de bicicleta.

Miguel Moreira: – A minha vida dividia-se entre o Porto, durante o ano letivo, e Amarante, nas férias. Eram dois ambientes completamente diferentes. No Porto, onde já existia de tudo: cafés, bares de diversão, cinemas, teatros… e Amarante, para não falar em Gondar, com um ambiente provinciano, fechado, onde toda a gente se conhecia, mas culturalmente muito atrasado.

Anabela Oliveira: – Pois, valiam as «casas do povo», um espaço de muita atividade cultural, com bandas musicais, grupos de teatro amador, entre outras atividades.

 
“Jorge Pedro Sousa na infância”
DR

Jorge Pedro Sousa: – Em 1972/1973, o Porto terminou em quarto lugar; em 1975, o Sporting terminou em quinto.

Abel Coelho: – O Inter de Milão ofereceu 90 000 contos (uma fortuna) à seleção nacional, na sequência do mundial de 66 e o regime não autorizou. O Eusébio era exibido politicamente como um troféu da nossa tolerância e assimilação multirracial. O regime esforçava-se por mostrar que Portugal ia de Lisboa a Timor.

 
“José Lessa: As viaturas que no inverno
afundavam na lama”
DR

José Lessa: – Eu próprio fui, embora tivesse um irmão mais velho que por ter sido doente pulmonar e feito tropa nos serviços auxiliares como escriturário, não foi. Eu vivia desde os 14 anos com a tormenta do que mais tarde veio a acontecer. Tive amigos e colegas que foram e não voltaram, outros voltaram mas ninguém sabia o que vinha dentro dos seus caixões, pois falava-se, a boca pequena, que colocavam terra e pedras em vez dos corpos, que em muitos casos ficavam completamente destruídos, principalmente, pelo rebentamento de minas ou granadas defensivas, as mais destruidoras. O tempo passado na guerra colonial, 28 meses, acabou, no entanto, por ser uma experiência de vida fantástica. Dei assistência como Enfermeiro a uma população negra com mais de 600 habitantes.

Anabela Oliveira: – José Lessa, conheço bem essa realidade. Todos os meus primos foram, assim como, alguns empregados que trabalhavam na loja do meu pai. Tenho muitos relatos e memórias deles. Lembro-me bem de ir a Alcântara levá-los ao barco. Tenho um primo que ficou muito traumatizado, ainda hoje se recusa a falar disso. Quando ele chegou da guerra, a mãe dele comentou “chegou o corpo do meu filho porque o meu filho não é o mesmo!”. Ele era muito alegre e bem-disposto e, quando voltou, passou a ser muito sério e muito triste.

Anabela Borges: – Pois, Anabela Oliveira, o que conta passou-se de igual modo com o meu sogro. Ele foi feito prisioneiro na Índia. O trauma, de ter sido prisioneiro, não o deixa falar muito.

Algo que não deixa de ser curioso, é que era a minha sogra que ajudava a escrever as cartas de uma rapariga analfabeta (madrinha de guerra do meu sogro),  no entanto, foi a minha sogra que casou com ele!

Abel Coelho: – Várias vezes escapei por um triz à DGS. A primeira foi quando ela interrompeu as conferências em Leiria (1970). Lembro que os padres franciscanos nos autorizavam a ir. Creio que eles não tinham consciência do que as conferências significavam. Naquela noite da intervenção da DGS eu não tinha ido. Outra vez, foi no Teatro Circo em Braga, nas comemorações do 31 de janeiro. O risco maior e golpe de sorte foi no dia 30 de abril de 73. Estive a namorar na cervejaria Portugália, em Braga, e tinha uma pasta cheia de panfletos para distribuir nessa noite (véspera do 1º de maio). Ao fim da tarde, fui levar a namorada a casa e nesse entretanto, houve uma rusga da polícia política que revistou tudo. Também uma vez, em 73, no Café Piolho, no Porto, estava um grande grupo de estudantes onde eu imperava a dar informações sobre o Padre Mário. Alguém do grupo se apercebeu que estávamos a ser escutados por um cavalheiro que fingia ler o jornal. Ele saiu e nós dispersámos logo, tendo ainda visto que a PSP entrou pouco depois no café.

 
“25 de Abril 1974: à tarde, em casa dos seus pais, Mário Pais

de Oliveira concede a sua primeira entrevista ao Jornal de Notícias,

na pessoa do jornalista Aurélio Cunha”
DR

Mário Pais de Oliveira: –  Fui preso pela PIDE duas vezes e, outras tantas, julgado no tribunal Plenário do Porto. Era o pároco de Macieira da Lixa. A primeira vez, julho de 1970, tinha 33 anos; a segunda vez, março de 1973, tinha acabado de fazer 36 anos. Estive preso por pregar o Evangelho da Paz, quando decorria, em três frentes de África, a Guerra Colonial, na qual tinha estado como capelão militar entre novembro de 1967 e março 1968, tinha eu 30 anos. Fui obrigado a ir e, ao fim de 4 meses, já estava expulso, com a chancela dada pelo Bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, de “padre irrecuperável”.

Miguel Moreira: – Eu assisti aos seus dois julgamentos, no tribunal de S. João Novo, no Porto, e guardo, religiosamente, os livros que publicou com as suas homilias.

Miguel Moreira: – Como sabemos houve uma relação muito estreita entre a Igreja e a política: o Cardeal Cerejeira e Salazar eram aliados políticos. Foi nesse contexto que se fez a Concordata com a Santa Sé. A maioria dos padres fazia a propaganda e defesa do regime. Basta recordar as centenas e centenas de missas que se rezaram por Salazar quando ficou incapacitado para o exercício do poder. Os professores do 1.º Ciclo tinham que fazer o juramento anticomunista. Eram, por isso, instrumentos do regime. Os próprios manuais escolares faziam, através de imagens e textos, a apologia do regime. Por exemplo, nas capas, as imagens eram da Mocidade Portuguesa.

Mónica Augusto: – Sei do que fala Miguel. A minha mãe foi professora primária, o crucifixo e as imagens do Regime estavam presentes, para além disso, uma vez por semana o Padre dirigia-se à escola para catequizar as crianças.

Abel Coelho: – Sim, na escola, rezava-se, no início da aula. Encimava o quadro preto, onde se batia com a cabeça quando não se sabia resolver os problemas, Américo Tomaz e Oliveira Salazar, separados pelo crucifixo. Quando algum estranho entrava, todos nos levantávamos educadamente.

Anabela Borges: – Mesmo depois do 25 de Abril, o papel do padre era vergonhoso: incitava as pessoas em orientações políticas, explicando-lhes, na missa, o símbolo do partido em que deviam votar. Na catequese, procurava assegurar sempre que, na escola e no dia-a-dia, rapazes e raparigas não se misturavam.

Miguel Moreira: – As reuniões preparatórias do 25 de Abril foram realizadas por um grupo muito restrito de militares, sobretudo capitães que se opunham à ida para o Ultramar e, por isso, à continuação da guerra colonial. A maior parte dos militares não se apercebia disso, sobretudo os milicianos. Só ficaram a saber da revolta na noite de 24 para 25 de Abril. Em março de 1974 já se tinha dado a revolta das Caldas que não conseguiu os seus intentos, mas, a partir daí, já se previa que mais tarde ou mais cedo a revolução ia acontecer.

Abel Coelho: – A guerra colonial e do Vietname fazia despertar muita juventude, principalmente universitária, para a política. O Partido Comunista tinha um forte trabalho de politização dos universitários porque eram eles os futuros oficiais milicianos, no Ultramar.

José Lessa: – Na verdade, estando eu no mato, em Angola, sabia que existiam movimentações na Metrópole nesse sentido. Gostávamos de ouvir as músicas então proibidas: Zeca e Adriano, entre outros, que o camarada Prieto levou na sua bagagem e que nos serviu de alfabetização durante os meses que antecederam a revolução.

Abel Coelho: – Tinha decidido, naquela manhã, tomar o pequeno-almoço num café. Passou por mim um carro da polícia e um ou dois minutos depois o mesmo carro voltou a passar. Comecei a suspeitar de tal modo que me esqueci do pequeno-almoço. Quando cheguei à faculdade, estava um magote de alunos em volta do carro do Agostinho Oliveira, hoje treinador de futebol, naquela altura defesa central do Braga e dos poucos, senão o único aluno que tinha carro. Tinha um «Toyota Celica» vermelho. Estava desconfiado mas não me quis aproximar. Quando tocou para a aula, um colega avisou-me de que havia uma revolução. Só fomos dois ou três alunos à aula e o professor, que era um conhecido reacionário, foi o primeiro a afirmar “porque eu sou um democrata. Sempre o fui, sempre o fui”. Lembro-me como se fosse hoje. No fim da aula, fui ouvir o comunicado do MFA no carro do Agostinho e de tarde, como trabalhava num seminário dos Carmelitas que tinha um padre holandês, ele trazia-me as notícias que ouvia nas rádios do seu país.

 
“Maria Anacleto era funcionária na
Escola Preparatória Teixeira de Pacoaes”
DR

Maria Anacleto: – A Escola fechou nesse dia a partir das 11 horas. Sei, que não sabíamos o que estava a acontecer e aproveitamos o lindo dia de sol para andarmos de barco no Rio Tâmega.

Amaro Gonçalo: – Nesse dia, estava em casa e não fui para a Escola, avisado de uma revolução. Perguntei ao meu irmão, se o tal, que mandava em todos, tinha sido mandado embora por outros! O meu irmão disse-me então: “isso mesmo, agora somos livres”!

Miguel Moreira: – Apercebi-me, durante a noite, das movimentações dos militares, mas só de manhã soube do que se passava. A emoção e a alegria apoderaram-se de nós. Não houve instrução nesse dia, claro, e, agarrados ao rádio, íamos acompanhando as notícias. A revolução estava em curso. Nós, militares, era-mos uma espécie de heróis: sempre que saía-mos à rua, em missões de vária ordem, era-mos aplaudidos e ofereciam-nos cravos vermelhos, cigarros…

 Ângelo Ochoa: – Em 74 tinha eu 29 anos. Chegara em setembro

 
“Ochoa na década de 70”
DR

de 73 a Setúbal. Temi quando soube na madrugada desse dia do golpe de militares. Era professor, a estágio, de Filosofia. Tinha vivas recordações de Coimbra, do teatro e das lutas pela democracia. O 25 de Abril veio acabar com uma guerra insustentável, como insustentáveis são todas as guerras. Além disso, o único bem que nos trouxe foi a liberdade de expressão.

Miguel Moreira: O 11 de março e o 25 de novembro de 1975 integram-se na profunda divisão que existia entre os que fizeram o 25 de Abril. Após a revolução, a sociedade e os militares radicalizaram as suas posições: se uns pretendiam a criação de uma democracia de tipo ocidental, pluripartidária, outros, influenciados pela Europa de leste, comunista e monopartidária, pretendiam a instituição de um regime do mesmo tipo. Vivi os dois acontecimentos de perto, pois o seu epicentro foi Tancos, onde me encontrava a prestar serviço militar, na Base Aérea 3, como Alferes miliciano.

José Lessa: Eu, já tinha regressado de Angola, trabalhava no Serviço de Urgência do Hospital Geral de Santo António. Se o 11 de março foi mais de lutas internas no MFA, o 25 de novembro também o foi, sendo mais abrangente, pois passou para a sociedade civil onde aconteceram confrontos entre gente da direita e extrema direita, onde se incluíam o PPD ( que depois passou a PPD/PSD) CDS, PDC, a esquerda e grupos de extrema esquerda como o MRPP, MES e a UDP que depois se fundiram quase todos na última, que anos mais tarde deu lugar ao atual Bloco de Esquerda.

Miguel Moreira: O 11 de Março, liderado pelo General Spínola, pretendia uma viragem à direita no rumo que a revolução estava a tomar. Foi de Tancos que partiram os T6 que bombardearam o Ralis, em Lisboa, e causaram a morte a um militar de Amarante, o soldado Luís de Freixo de Baixo, cujo funeral teve honras de quase herói nacional. O 25 de novembro foi um golpe de esquerda, controlado pelos comunistas, e foi na sua sequência que o General Eanes ascendeu a um lugar de destaque na história da revolução portuguesa. Durante esta fase da revolução estivemos muito próximos da guerra civil e só depois do 25 de novembro é que tudo começou a ficar mais calmo.

 
“José Afonso Pedroso na década de 70”
DR

José Afonso Pedroso: – Vivi quase sempre e antes do 25 de Abril em regime de internato e a estudar. Nos últimos anos tive acesso, por iniciativa minha e de um professor, a vários livros que não eram de fácil aquisição.

Miguel Moreira: – No Porto, a editora «Afrontamento», depois encerrada, publicava muitas obras de caráter revolucionário. A literatura clandestina abundava por todo o lado.

Mónica Augusto: – Tenho conhecimento através de relatos familiares desse tipo de literatura, aliás, ainda há lá por casa livros adquiridos nessas condições, lembro-me em particular de um cujo título é elucidativo: «Fátima Desmascarada».

Abel Coelho: – Li o «Manifesto do Partido Comunista» de Marx e Engels em francês porque não havia tradução em Português, em 1972. Fiz dois seminários sobre Jean Paul Sartre, escritor maldito para a Igreja Católica, inspirador da juventude do maio 68 e dos lemas «Faz amor e não a guerra» e «É proibido proibir». Nesses anos, a canção «If you are going to S. Francisco», divulgada desde 67, inspirava toda a juventude libertária e idealista.

Abel Coelho: – Joan Baez Bob Dylan protagonizavam a música de intervenção que a Rádio Renascença passava. Era nesta rádio, da igreja, onde se descortinava mais informação, apesar da mão dura do Cardeal Cerejeira, no tempo de Salazar. Decorei a letra da canção «Grândola Vila Morena», aí por 1973 porque, por volta das 6 da tarde, ela passava na Rádio Renascença. Eu e outro colega de trabalho anotava-mos, verso a verso, e, nesse verão, eu e outros colegas fazia-mos serenatas com ela.

 
“Lena Coelho, início da década de 80”
DR

Lena Coelho: – Tinha 11 anos, morava no Algueirão, Mem Martins, e estudava no Colégio D. Afonso V. Ouvia a Susy 4Led ZepelinSupertramp, Santana e todos os grandes grupos da altura .

Miguel Moreira: A música foi sempre uma “arma” contra o regime. Refiro o Zeca Afonso, o Adriano, o Padre Fanhais… A canção do Paulo de Carvalho não foi considerada uma canção muito revolucionária. Só o foi porque serviu de senha para os militares revoltosos. A «Grândola», segunda senha, é, ainda hoje, muito mais revolucionária que «E depois do Adeus». «A Tourada» de Fernando Tordo, que também foi à Eurovisão, era muito mais crítica.

Jorge Pedro Sousa: – Eu e o meu pai íamos, semanalmente, ao cinema, normalmente ver comédias, westerns ou filmes de ação: «Bud Spencer/Terence Hill», por exemplo. O filme que mais marcou a minha infância foi a «Guerra das Estrelas».

Miguel Moreira: – No Porto não perdia um filme, no Coliseu, no Trindade, no Batalha, no S. João, no Rivoli.

Anabela Oliveira: – Ia-se muito ao cinema, quase todos os dias, era acessível. As pessoas iam muito ao teatro nas aldeias e nas cidades. O 25 de Abril trouxe novos e mais filmes.

José Lessa: – O meu primeiro filme no cinema foi «Amor em Acapulco» com Elvis Presley. Depois gostei de outros como: «Laurence da Arábia». «Os canhões de Navarone»; «A Ponte do Rio Kuay»; «Dr. Jivago», entre muitos outros.

Anabela Oliveira: – As radionovelas, um sucesso, à época – as nossas mães levavam o rádio para a praia para poder ouvir estes folhetins. Estávamos todos a ouvir o episódio e, só depois é que podíamos ir para o mar tomar banho. «Simplesmente Maria» era a mais popular.

Abel Coelho: – Sim, Anabela Oliveira, já em meados dos anos 60, a rádio dava “romances” – radionovelas – que as raparigas escutavam devotadamente. O Rádio Clube Português transmitia, entre as 13 e as 14 horas, os «Parodiantes de Lisboa», onde havia muita sátira.

Anabela Borges: – A rádio era uma constante nas nossas vidas. O que mais me lembro de ouvir era o fado. A minha mãe era modista e também cantava o fado, enquanto costurava, sobretudo Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues e Hermínia Silva.

Anabela Oliveira: – Lembro-me do «Primeiro de Janeiro», «Diário de Notícias», do «Expresso», do «Tempo», do «Diabo», do «Avante».

Miguel Moreira: – O «Expresso» foi, sem dúvida, o jornal/semanário que mais oposição fez ao regime. Conseguia ludibriar a censura através de artimanhas que os censores não “topavam”. A censura, apesar de ter alterado o nome para “exame prévio”, continuava a controlar toda a informação. Mas havia muita forma de lhes dar a volta, pois os censores não tinham formação intelectual e política suficiente para o fazer.

Jorge Pedro Sousa: – Lá em casa lia-se diariamente «O Primeiro de Janeiro» e, passado alguns anos, o «Jornal de Notícias».

“O Jornal de Notícias em 74″


DR «Ricardo Pinto», YOUTUBE

Miguel Moreira: – O programa que marcou o início dos anos 70 foi o «Zip Zip», um programa de humor, líder das audiências, com Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raúl Solnado. Depois, a nível político, as célebres «Conversas em Família», de Marcelo Caetano.

Anabela Borges: – Em minha casa, o Festival da Canção era um momento único para ver em família. Para não nos esquecermos das canções, púnhamos um radiogravador debaixo da TV e ninguém podia fazer barulho. No dia seguinte, ensaiávamos as canções e fazíamos o nosso próprio festival, com as músicas estrangeiras e tudo.

Anabela Oliveira: – «Os caminhos de Noelle», uma série francesa, «Os Pequenos Vagabundos», «Marco e Heidi», «Paulo e Virginia», «A Escrava Isaura», «O Natal dos Hospitais», os programas de cinema de animação do Vasco Granja, sem esquecer a primeira telenovela emitida em Portugal – «Gabriela», marcam as minhas recordações.

Miguel Moreira: – Anabela Oliveira, na minha vida vi duas ou três telenovelas. A «Gabriela», que referiu, via duas vezes, na primeira e na segunda versão. Foi realmente um choque cultural: ver cenas tão arrojadas para a época num assunto que era tabu, o sexo, “escandalizou” muita gente. Claro que eu já conhecia a obra de Jorge Amado e, para além das cenas “picantes”, interessava-me conhecer a sociedade brasileira dos “coronéis”. O impacto foi tão grande que os nomes e expressões utilizadas passaram a fazer parte do vocabulário comum.

Anabela Oliveira: – Pois Miguel, o facto, é que os padres criticavam muito os episódios da «Gabriela».

Anabela Oliveira: – Pasta Medicinal Couto, Sutiãs da Triumph, água tónica Schweppes; Flora para barrar o pão, Laranjina C, canetas BIC, Citroen Diane, Restaurador Olex, Planta para barrar o pão, creme Nívea, Vick Vaporub para as constipações

Anabela Borges– Lembro-me também do Tulicreme.

 
“Olinda Cavadinha com 15 anos”
DR

Olinda Cavadinha: – Em 1974 estava em Moçambique, mais propriamente em Lourenço Marques e lá as vivências eram completamente diferentes das de cá da metrópole. Éramos pessoas mais desenvoltas, quase parecidas com as atuais. Enquanto cá era miséria e viviam de maneira totalmente diferente, lá era um mundo à parte: muita criadagem, nada faltava, muita abundância, as pessoas vestiam-se com muito requinte e “glamour”, uma outra vivência, sem dúvida.

Teresa Silva: – Em 1974, tinha eu seis anos, estava na África do Sul, país onde nasci.  Apesar de muito pequena lembro-me do

 
“Teresa Silva no Rancho Folclórico”
DR

alvoroço causado pelo 25 de Abril. No entanto, também recordo a apreensão dos meus pais. À distância, julgo entender essa apreensão: eles sabiam bem o que sucedia a quem se manifestasse contra o governo e viviam num país cuja ditadura também era feroz. A África do Sul tinha o seu «apartheid» que era conhecido pelos seus ideais racistas mas todo aquele que se opusesse ou de alguma forma demonstrasse algum desagrado pelo governo também era perseguido.

Ercília Costa: – Em 1974, frequentava o equivalente ao 8.º ano

 
“Ercília Costa (dt.) com a irmã”
DR

numa escola francesa. Como jovem, sentia-me plenamente integrada e sentia que aquele país me pertencia um pouco. Não vivemos esse momento histórico em Portugal, mas conseguimos vivê-lo à distância, tal era a nossa ânsia de um dia regressarmos a um país livre. Nesse dia, todos os portugueses se procuravam para juntos comemorarem, com alguma contenção ainda, o acontecimento por que mais ansiavam. O momento mais marcante que recordo, com plena clarividência, ainda hoje, foi uma sessão de esclarecimento a que fomos assistir, uns meses após os acontecimentos, na sala de teatro da nossa cidade, e que contou com a presença de um dos Capitães de Abril, Vítor Alves. Foi da boca dele que ouvi e gravei todos os acontecimentos. Ia absorvendo as suas palavras, uma a uma, as suas expressões faciais, a energia que libertava e toda a euforia de tantos e tantos Portugueses que lá estavam. Esse foi o Homem de Abril que sempre guardei na minha memória.

 
“Rui Guimarães, na Dinamarca, antes de 1974”
DR

Rui Guimarães: – Estava na Dinamarca em 74. O 25 de Abril parece ter sofrido de algo comum a outros países que o tiverem em outra data ou mesmo o foram tendo. É uma questão de democracia ou de humanismo que não dotou esta humanidade de defesas. Talvez faltasse, ou ainda falte, ao Governo do Estado democrático mecanismos de controlo das instituições.

 
“José Eduardo Reis em dia de festa”
DR

José Eduardo Reis: – Em termos gerais, a perceção da experiência do tempo, muito mais veloz, mas também muito mais tensa e geradora de stress. Em termos sociopolíticos, a estrutura ideológica, francamente mais plural, mas também mais indefinida, se não superficial e oportunisticamente vivenciada e cultivada.

Miguel Moreira: – No aspeto económico as alterações deram-se sobretudo após a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Entramos num mercado único e isso trouxe-nos vantagens mas também desvantagens. Se beneficiámos com os fundos de coesão que modernizaram o país, sobretudo a nível das infraestruturas, por outro lado, a falta de competitividade da nossa economia colocou-nos numa situação de dependência do estrangeiro de que hoje estamos a pagar elevados custos.

Jorge Pedro Sousa: – Em 1974, aquando da revolução, havia quase pleno emprego em Portugal, embora uma percentagem significativa da população, ainda vivesse da agricultura de subsistência e do trabalho agrícola sazonal, pago à jorna. Havia mais emprego em Portugal no final do Estado Novo do que há agora.

Uma viagem ao passado que poderá continuar a recordar lendo, na íntegra, os testemunhos dos entrevistados:

LER OS TESTEMUNHOS NA  ÍNTEGRA

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