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A LIBERDADE DE NÃO SER LIVRE

Cidália Pinto
Ela era menina do pai, que era rígido por amar muito (como amam os pais a sério).
A filha sempre o amou na mesma medida e respeitou, mesmo que nem sempre concordasse com o pai: o amor, primeiro.
Um dia ela conheceu-o.
Ele fora cumprir serviço militar obrigatório e nas horas vagas dava aulas no liceu onde ela, com dezasseis anos, estudava.
Ele soube que a amaria. Amou.
Ela amou-o, também. Ainda hoje o ama. – O amor correspondido dá  a sensação de sermos como os pássaros.-
O pai permitiu à filha amar, sem interferência, aquele homem mais velho e de longe.
Namoraram à moda antiga, de mãos dadas, nos bancos dos jardins e os beijos eram muitas vezes roubados e às escondidas.
Casaram-se por amor. Só anos mais tarde o fizeram pela igreja.
Vieram para Portugal. – Ainda não tinha referido mas, ela era de Cabo Verde.
Foi assim iniciado um novo capítulo da vida deles.
Sonharam. Concretizaram.
Seriam pais.
Foram pais de uma menina que não viveria se eles não se doassem quanto bastasse, e mais um pouco.
Nunca pensaram duas vezes.
Tiveram mais uma menina e um menino.
Ela, que tinha abdicado de “ser algo quando fosse grande”, foi esposa, foi mãe e foi tudo.
Nunca se arrependeu de ter deixado a terra que lhe tivera dado à luz as origens.
Nunca se arrependeu de deixar de ser mais ela, para poder ser mais dos outros.
Ele, o homem que amou e que ainda ama, foi até onde o talento deixou. Homem, marido, pai, avô de sucesso.
Os filhos cresceram e ela decidiu ser o que, quando era pequena, desejou ter sido quando fosse grande.
Tem diploma de direito – nunca exerceu.
Não tem diploma de mãe, de esposa, de avó: tem quatro netos.
Exerce com todo o amor do mundo.
Cuidar da vida dos outros sempre deu sentido à vida dela.
Em Agosto de 2017 o marido descobriu que tinha cancro nos intestinos.
Todos sofreram muito. Ela cuidou, como sempre, dele, da filha doente, e ajudou a cuidar dos demais sempre que precisassem.
O sorriso bondoso nunca a abandonou. Apesar de chorar às escondidas.
Na semana passada o marido partiu.
Viu o marido ser grande e voltar a ser pequenino: com todos os cuidados que os pequeninos exigem.
Ela ficou sem ele (embora ele esteja com ela).
Anda meio esquecida dela. Talvez andem, todos, meio esquecidos dela, porque:
A vida toda, ela, escolheu amar.
Eis a liberdade mais difícil de todas.
Para a Beatriz e para o António Luís.
Com todo carinho do mundo.

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